Um erro
Estou aqui devido a um erro — não nesta cadeia especificamente — mas em todo este mundo terrível, às riscas; um mundo que parece não um mau exemplo de amadorismo, mas que é, na realidade, horror, calamidade, loucura, erro, e vede, o achado raro, intrigante, mata o turista, o gigantesco urso esculpido abate o seu martelo de madeira sobre mim. E no entanto, desde a mais tenra infância, tive sonhos... Nos meus sonhos, o mundo tinha nobreza, espiritualidade; as pessoas que em estado de vigília tanto temia nele apareciam numa refracção fremente, como se estivessem embebidas, envoltas nessa vibração de luz que em tempo de calor confere vida aos próprios contornos dos objectos; as suas vozes, os seus passos, as expressões dos seus olhos e mesmo das suas roupas adquiriam um significado comovente; em termos mais simples, nos meus sonhos o mundo ganhava vida, tornando-se tão captivantemente majestático, livre e etéreo que depois era opressivo respirar a poeira dessa vida decalcada. Mas também há muito que me afiz a ideia de que aquilo a que chamamos sonhos é uma semi-realidade, a promessa de realidade, um vislumbre e um bafo, ou seja, os sonhos contêm, num estado diluído, muito vago, mais realidade genuína do que o nosso decantado estado de vigília que, por sua vez, é um semi-sono, uma modorra maligna na qual penetram, grotescamente deformados, os sons e as imagens do mundo real, fluindo para lá dos limites da consciência, como quando se ouve durante o sono um conto horrorosamente insidioso porque o ramo duma árvore está a arranhar uma vidraça, ou nos vemos a afundar-nos na neve porque o lençol está a escorregar. Mas como receio acordar!
Vladimir Nabokov, in Convite para uma DecapitaçãoEtiquetas: leituras