30/11/06

A MORTE É A CURVA DA ESTRADA


foto de ana assunção


A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
existir como eu existo.

A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.


Fernando Pessoa dobrou a curva da estrada em 30.11.1935.
Continua, porém, a ser "visto" .

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29/11/06

PÉROLAS - 94




Magnólias


Esqueceram-se das folhas
tão grande era a pressa
de florirem



Jorge Sousa Braga

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28/11/06

LEITURAS - 28




A floresta de cedros

«Ninsun foi ao seu quarto, vestiu um vestido que lhe ficava bem, pôs jóias que lhe embelezavam o peito, colocou uma tiara na cabeça e as suas saias varriam o chão. Então subiu ao altar do Sol, que era no telhado do palácio; queimou incenso e levantou os braços para Shamash enquanto o fumo subia:
«"Ó Shamash, porque deste tu este inquieto coração a Gilgamesh, meu filho? Porque lho deste? Tu o inspiraste, e agora eis que parte para uma longa viagem para a terra de Humbaba, a viajar por uma estrada desconhecida e a travar uma singular batalha. Portanto, desde o dia em que partir até regressar, até que chegue à floresta de cedro, até que mate Humbaba e destrua o mal, que tu, Shamash, abominas, não te esqueças dele; mas que a alvorada, Aya, a tua noiva querida, to recorde sempre; e, quando o dia cair, entrega-o ao vigilante da noite que o guarde do mal." (...)
«Juntos [Gilgamesh e Endiku] desceram à floresta e chegaram à montanha verde. Ali pararam e ficaram tomados de mudez; pararam e contemplaram a floresta. Viram a altura do cedro, viram o caminho para a floresta e o carreiro onde Humbaba costumava passear. O caminho era largo e fácil de percorrer. Contemplaram a montanha de cedros, a morada dos deuses e o trono de Ishtar. A grandeza do cedro erguia-se diante da montanha, a sua sombra era bela e reconfortante; montanha e clareira eram verdes de mato.
«Então Gilgamesh abriu um poço antes do pôr do Sol. Subiu ao alto da montanha e espargiu farinha fina no chão, dizendo:
"Ó montanha, morada dos deuses, traz-me um sonho favorável."»

(in "Gilgamesh", versão de Pedro Tamen do texto inglês de N. K. Sandars, Vega)

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27/11/06

OMNIA VINCIT AMOR - 61




As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento

e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era ao que me lembro
da cor do jardim.


António Maria Lisboa

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26/11/06

DO FALAR POESIA - 57




Poema


Esculpir conchas
tão delicadas
e diversas
é um segredo do mar
e dos moluscos.

Fazer versos
como quem esculpe conchas
um desafio interminável
ininterrupto.

Luíza Mendes Furia
http://br.geocities.com/malufuria/

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25/11/06

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 29





da espera


colhe o meu amor
com a delicadeza que colherias
uma rosa.

eis que te espero há tanto
que pude transformá-lo
na flor nascida no deserto

colhe o meu amor,
se o quiseres, com o encanto
que o perfume desperta
no corpo desolado pela espera

é teu o meu corpo
cultivado para ti
no pequeno espaço de um oásis

se não puderes perceber
saber do desejo que me habita
do afeto já é parte minha

então finge que não me viste
e eu me iludirei à tua espera ainda



silvia chueire - da série Árabes - XXII

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24/11/06

NOCTURNOS - 19




Enquanto tudo dorme, sento-me cheio de alegria
Sob a abóbada estrelada que as frontes alumia;
Perscruto se do alto vem um sinal rumoroso;
E a hora com sua asas docemente me brinda
Quando contemplo, comovido, a festa infinda
Que, de noite, ao mundo oferece o céu radioso!

Penso às vezes que estes sóis que resplandecem,
Na terra adormecida, só a minha a alma aquecem;
Que para os entender, só eu fui predestinado;
Que sou eu, sombra vã, obscura e taciturna,
O misterioso rei desta pompa nocturna;
Que só para mim o céu foi iluminado!

Novembro de 1829

Victor Hugo , Poemas
(tradução de Maria Manuela Parreira da Silva)

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23/11/06

ESCREVER - 43



Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.

Clarice Lispector

[Encontrado in http://cortenaaldeia.blogspot.com/]

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22/11/06

CAMONIANAS - 23




Pode um desejo imenso

Pode um desejo imenso
arder no peito tanto
que à branda e a viva alma o fogo intenso
lhe gaste as nódoas do terreno manto,
e purifique em tanta alteza o esprito
com olhos imortais
que faz que leia mais do que vê escrito.

Que a flama que se acende
alto tanto alumia
que, se o nobre desejo ao bem se estende
que nunca viu, a sente claro dia;
e lá vê do que busca o natural,
a graça, a viva cor,
noutra espécie milhor que a corporal.

Pois vós, ó claro exemplo
de viva fermosura,
que de tão longe cá noto e contemplo
n'alma, que este desejo sobe e apura:
não creais que não vejo aquela imagem
que as gentes nunca vêem,
se de humanos não têm muita ventagem.

Que, se os olhos ausentes
não vêem a compassada
proporção, que das cores excelentes
de pureza e vergonha é variada;
da qual a Poesia, que cantou
até aqui só pinturas,
com mortais fermosuras igualou;

se não vêem os cabelos
que o vulgo chama de ouro,
e se não vêem os claros olhos belos,
de quem cantam que são do Sol tesouro,
e se não vêem do rosto as excelências,
a quem dirão que deve
rosa, cristal e neve as aparências;

vêem logo a graça pura,
a luz alta e severa,
que é raio da divina fermosura
que n'alma imprime e fora reverbera,
assi como cristal do Sol ferido,
que por fora derrama
a recebida flama, esclarecido.

E vêem a gravidade
com a viva alegria,
que misturada tem, de qualidade
que üa da outra nunca se desvia;
nem deixa üa de ser arreceada
por leda e por suave,
nem outra, por ser grave, muito amada.

E vêem do honesto siso
os altos resplandores,
temperados co doce e ledo riso,
a cujo abrir abrem no campo as flores;
as palavras discretas e suaves,
das quais o movimento
fará deter o vento e as altas aves;

dos olhos o virar,
que torna tudo raso,
do qual não sabe o engenho divisar
se foi por artifício, ou feito acaso;
da presença os meneios e a postura,
o andar e o mover-se,
donde pode aprender-se fermosura.

Aquele não sei que,
que aspira não sei como,
que, invisível saindo, a vista o vê,
mas para o compreender não acha tomo;
o qual toda a Toscana poesia,
que mais Febo restaura,
em Beatriz nem em Laura nunca via;

em vos a nossa idade,
Senhora, o pode ver,
se engenho e ciência e habilidade
igual a fermosura vossa der,
como eu vi no meu longo apartamento,
qual em ausência a vejo.
Tais asas dá o desejo ao pensamento!

Pois se o desejo afina
üa alma acesa tanto
que por vós use as partes da divina,
por vós levantarei não visto canto
que o Bétis me ouça, e o Tibre me levante;
que o nosso claro Tejo
envolto um pouco vejo e dissonante.

O campo não o esmaltam
flores, mas só abrolhos
o fazem feio; e cuido que lhe faltam
ouvidos para mim, para vós olhos.
Mas faça o que quiser o vil costume;
que o sol, que em vós está,
na escuridão dará mais claro lume.


Luís de Camões, Rimas/Odes

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21/11/06

POEMAS COM ROSAS DENTRO -28



quando as palavras me não chegarem
irei colher a estrela morosa no mar

no mar que a terra me deu
ainda que me atormente o sangue de um açoite
louvo a noite a divina noite ilesa
onde rebenta a tristeza
ou uma rosa.


maria gomes
abril.2006

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20/11/06

EDUCAÇÃO -19



Aconselho, a quem ainda não conheça este documento, a sua leitura, se possível atenta, em :

http://www.dgidc.min-edu.pt/TLEBS/CDMateriaisDidacticos/trabalhos/90_Lusiadas_3C.ppt

[ trata-se de material de «apoio» à implementação dos novos programas - 9ºano]

E nada mais digo...

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DE AMICITIA - 50





Sê tardio no fazer amigos e constante no conservar a amizade. Os íntimos que escolheres sejam, não os que te podem dar maior prazer, mas maior proveito; não pessoas que falem o que é agradável, mas o que é devido; não que lisonjeiem, mas que digam a verdade. Se te acostumares a abrir os ouvidos à lisonja e a nela te comprazeres, jamais ouvirás a verdade.
Juan Luis Vives, in 'Introdução à Sabedoria'


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19/11/06

PEROLAS - 93



Alice

É do lado de cá do espelho
que corremos perigo.
Do lado de lá
tudo tem solução:
Alice espera por nós,
Alice dá-nos a mão.

Yvette Centeno
http://literaturaearte.blogspot.com/

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18/11/06

LEITURAS - 27




"Agora deixa que te diga uma coisa - disse, e encostou-se à cómoda, acendeu um cigarro e, num gesto distraído, deitou o fósforo na salva dos cartões-de-visita. - Entre nós sucederam coisas que não podemos calar por mais tempo. Há quem silencie durante toda a vida o que foi mais importante. Às vezes morrem connosco. Mas, às vezes, há maneira de as dizer... e, então, não se pode, não é admissível que continuemos calados. Creio que um silêncio destes pode ter sido o pecado original de que se fala na Bíblia. Há uma mentira ancestral na vida; o homem tarda a dar-se conta dela. Não queres sentar--te? Senta-te, Eszter, e escuta-me. Não, desculpa, mas, desta vez, gostaria de ser eu a elaborar a acusação e a ditar a sentença. Até agora foste tu a sentenciar. Senta-te, por favor.
Falava em tom cortês, mas peremptório.

- Toma - disse, e indicou uma cadeira. - Olha, Eszter, nós falamos sobre tudo há vinte anos, As coisas não são assim tão simples, Tu elencas os meus pecados - tu e os outros -, e esses pecados, infelizmente, são ver­dadeiros. Falas-me de um anel e de mentiras, de promessas que não cumpri, de letras que não paguei. Mas há outras coisas, Eszter. E piores. É supérfluo dizer tudo... não me quero defender... pois não são já esses pormenores a decidir o meu destino. Fui sempre um fraco. Gostaria de ter feito alguma coisa neste mundo, e nem era absolutamente desprovido de talento. Mas intenções e talento tudo isso é muito pouco. Agora já sei que é pouco. Para a criação é preciso algo mais... Uma espécie de força particular, ou de disciplina, ou as duas juntas, e julgo que isso é o que se chama ter carácter… E essa capacidade, ou característica, é que me falta. É uma estranha surdez. É como se alguém conhecesse exactamente a música cuja melodia entoa mas não ouvisse os sons. Quando te conheci, ainda não sabia isto assim, com a precisão com que te conto... nem sabia que tu significavas, para mim, o carácter. Compreendes?

- Não - disse, com franqueza.

Não eram tanto as suas palavras que me surpreendiam, mas o seu tom de voz e a maneira de falar. Nunca o ouvira falar neste tom. Falava como alguém que... não, é-me quase impossível descrever o tom da sua voz. Falava como alguém que entrevê algo, uma verdade, ou uma descoberta, e vai pelo caminho certo, não pode ainda dizer a sua verdade, mas está cada vez mais perto da sua visão e, em espasmos, esforça-se por gritar ao mundo as suas impressões. Falava como alguém que sente algo. Eu não estava habituada a esse tom de voz em Lajos. Observava-o em silêncio.

Que simples - disse. - Depressa compreendes. Tu foste, tu poderias ter sido, para mim, o que me faltava: o carácter. São coisas que se sentem. Uma pessoa que não tem carácter, ou não tem um carácter perfeito, tem o seu quê de inválido, no sentido moral. Há muitas pes­soas assim. Como se fossem criaturas perfeitas, a quem falta uma mão, ou uma perna. Aplica-se-lhes uma prótese e tornam-se logo capazes de trabalhar, de ser úteis à sociedade. Não te ofendas com a analogia, pois tu poderias ter sido uma prótese para mim... Uma prótese moral. Espero não magoar-te -acrescentou, docemente, e inclinou-se para mim.
Não - disse -, só não acredito nisso, Lajos. Um carácter não se pode substituir. O sentido moral não se pode transmitir de uma pessoa para outra como um transplante artificial. São teorias. Não te ofendas.

- Não são só teorias. O sentido moral, vês, não é algo de hereditário, mas uma característica adquirida. Os homens nascem sem moral. O sentido moral dos sel­vagens ou das crianças é diferente da moral de um juiz de sessenta anos do Supremo Tribunal de Viena ou de Amesterdão. Adquire-se o sentido moral durante a vida, tal como se adquirem maneiras e cultura.”

Sandor Marai - in A Herança de Eszther
-Publ.D.Quixote,2006

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17/11/06

POETAS AMIGOS - 43

Image hosted by Photobucket.com
Van Gogh-vista de Arles com lírios

breve partirei

espera-me uma paisagem de Van Gogh
em parede branca

de casa rústica
em campo verde

de distante país azul



António Cardoso Pinto




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16/11/06

PENSAR - 56



" Une injustice faite à un seul est une menace faite à tous."

Montesquieu ( 1689 - 1755 )

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15/11/06

DO FALAR POESIA - 56



Poética para desanimar os leitores

Não digo nada que não tenha sido dito.
Não procures novidades no meu verso.
Amei sem ser amado, como tantos.
Fui jovem, como todos, sem sabê-lo.
Pedi à arte coisas que esqueci.
Apenas sei que de nada me serviram.
Tive um tesouro nas mãos, tive
ouro e areia, luz e desconsolo.
Não procures novidades. O que digo
já tu o pensaste e outros o disseram
com palavras mais belas do que as minhas.
Apenas escrevo para matar o tempo.


José Luis García Martin

(Tradução de Joaquim Manuel Magalhães)

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14/11/06

O PRAZER DE LER - 54





O destino dos livros está escrito nas estrelas

"Os adultos perguntam com frequência o que acontecerá aos livros quando as crianças deixam de os ler.Talvez esta seja uma resposta:
"Nós carregá-los-emos todos em enormes naves espaciais e enviá-los-emos para as estrelas!"Uau...!
Os livros são realmente como estrelas num céu nocturno. Há tantos, não podem ser contados e frequentemente estão tão longe de nós que não ousamos procurá-los. Mas imaginem só como ficaria escuro se um dia todos os livros, esses cometas no nosso universo cerebral, partissem e cessassem de fornecer essa energia ilimitada da imaginação e do conhecimento humanos...Valha-nos Deus!
Vocês dizem que as crianças não podem compreender uma ficção científica como esta?! Muito bem, eu viajarei para a terra e permitir-me-ei recordar os livros da minha própria infância. De qualquer maneira, isto é o que me veio à mente quando eu estava a olhar para a Ursa Maior, a constelação a que nós, Eslovacos, chamamos "Grande Carroça", porque os meus livros mais preciosos me chegaram numa carroça... Isto é, não chegaram inicialmente a mim, mas à minha mãe. Foi durante a guerra.Um dia, estava ela à beira da estrada quando passou chocalhando uma carroça - uma carroça de feno atulhada de livros e puxada por uma parelha de cavalos. O condutor disse à minha mãe que estava a transportar os livros da biblioteca da cidade para um lugar seguro, para impedir que fossem destruídos.Nesse tempo a minha mãe era ainda uma menina pequena, ansiosa por ler, e à vista daquele mar de livros os olhos dela iluminaram-se como estrelas. Até então só tinha visto carroças cheias de feno, palha ou talvez estrume. Para ela uma carroça cheia de livros era como algo saído de um conto de fadas. Arranjou coragem para pedir: "Por favor, não poderia dar-me ao menos um livro dessa grande pilha?"O homem sorriu, assentiu, saltou da carroça abaixo, desatou um dos lados e disse: "Podes levar para casa todos os que caírem no caminho!"
Alguns volumes caíram ruidosamente na estrada poeirenta, e pouco depois aquela estranha carroça já tinha desaparecido numa curva da estrada. A minha mãe apanhou os livros, com o coração a bater furiosamente de excitação. Depois de lhes limpar o pó, verificou que entre eles, perfeitamente por acaso, havia uma edição completa dos contos de Hans Christian Andersen. Nos cinco volumes de várias cores não existia uma única ilustração, mas aqueles livros iluminaram milagrosamente as noites que a minha mãe tanto temia. Isso acontecia porque durante aquela guerra ela tinha perdido a sua própria mãe. Quando lia aqueles contos ao serão, cada um deles era para ela um pequeno raio de esperança, e com uma imagem tranquila no coração, pintada com pestanas meio fechadas, podia adormecer sossegadamente, pelo menos durante um bocado...Os anos sucederam-se e aqueles livros passaram para mim. Eu levo-os sempre comigo pelas poeirentas estradas da minha vida. De que poeira é que eu falo, perguntam vocês?Ah!Talvez eu estivesse a pensar na poeira de estrelas que se instala nos nossos olhos quando nos sentamos numa cadeira a ler numa noite escura. Isto é, se estivermos a ler um livro. No fim de contas, nós podemos ler todo o tipo de coisas. Uma face humana, as linhas da palma de uma mão, e as estrelas...As estrelas são livros num céu nocturno e iluminam a escuridão.Sempre que eu duvido se vale a pena escrever mais um livro, contemplo o céu e digo para mim próprio que o universo é realmente infinito e que ainda deve haver lugar para a minha pequena estrelinha."

Ján Uliciansky *
*natural de Bratislava


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13/11/06

OS MEUS POETAS - 64


foto de maria gomes


Parte-se


Parte-se,
como uma ânfora desmedida,
o meu coração.
É Junho,
começam a abrir-se as flores da melancolia.

Desço os degraus da casa e da terra.
Fecho os olhos.
E por dentro da sua cor,
por dentro da sua luz verde,
esses olhos partem para o mar,
quando o crepúsculo cai do outro lado dos
espelhos

Parece que os girassóis se erguem na berma
das estradas.
Parece que as cegonhas dormem.

Nem tu,
cujo rosto vi desenhar-se tantas vezes no
rosto da lua,
me poderás salvar.


José Agostinho Baptista, Esta Voz é Quase o Vento

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12/11/06

ESCREVER - 42




O homem que queria ser escritor


Tinha começado a ler livros escritos por exilados: Ovídio, Nabokov, Brodsky, Rushdie, Kundera.Escritas estranhas, doridas, separadas, mas não isentas de humor.Lembrou-se do quanto tinha sonhado em ser escritor.Sentou-se à mesa, puxou de um molho de folhas - folhas que vinham com as revistas de que era assinante, com o nome e a morada de um lado, brancas do outro - escrevia nelas como se as dirigisse a si próprio - e resolvendo ser metódico, tratou de elaborar uma lista dos obstáculos que o impediam de ser escritor.Primeiro que tudo, uma imaginação pobre. A medida da sua pobreza revelava-se-lhe quando, com a maior euforia, descobria os mundos revelados pelos escritores que lia... o que acontecia com quase todos, diga-se a verdade.Em segundo lugar, uma vida interior lenta, pesada, asfixiada. Tudo o que escrevia (que era sempre irrisoriamente pouco) saía com dificuldade e aos tropeções, esgotando-o passado pouco tempo. Na realidade, era um homem sem narrativas.Finalmente, a consciência de que os outros iriam sempre olhar com piedade o que ele escrevesse, associada a uma imensa preguiça, fazia com que nunca terminasse o que começava.Olhou então para a página meio vazia, sabendo que nunca a iria conseguir preencher com o que quer que fosse de interessante. Não, pelo menos para ele próprio. E seguramente que não para os outros.Pousou a caneta e voltou aos textos escritos por exilados: Mehmed Uzun, Bei Dao, Bashkim Shehu, Svetlana Alexievitch,...

Rui Monteiro

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11/11/06

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 27


Acho que sábado é a rosa da semana.

composição de Augusto Mota

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NOCTURNOS - 18




Através da noite


Ela está exposta na sua frágil frescura
e um pouco mais longínqua e despojada.
Ele procura-a no cimo da montanha
ou numa vertente vertical. A noite é calma,
um barco atravessa o mundo. Junto de um rio
brilham chamas sem rumor. Dispersas
são as imagens e as vozes, mas reunidas
num outro mundo mais sereno e vagaroso.
Ele soletra a pedra nupcial e misteriosa.
Um grito rápido de pássaro atravessa a clareira.
Entre duas árvores cintila a Cassiopeia.
Passam esquivas sombras sob os ramos das árvores.



António Ramos Rosa

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10/11/06

POETAS AMIGOS - 42




Poema da Amiga

Amiga,
tu não cabes num poema.
Esse dou a quem manda meu orgulho.
Ali os versos são medidos, são de propósito,
mas tu me dás o verso inesperado.
Assim me apraz,
assim eu gosto.
Me conversas, te converso,
dizes coisas tuas e me levas coisas minhas,
assim, sem que um peça, sem que o outro se obrigue.

Se a esse porto nos foi fácil a atracação,
dizer que não é escusado,
porque sabes que não.
Muitas vagas e tormentas,
vírgulas e reticências,
pontos de interrogação
—areia, pedra e cimento—,
fizeram esse, teu e meu, nosso momento,
onde um —capricho do acaso, sabe do outro.

Se nesse porto faz-se aconchegante o cais,
dizer que sim é redundante,
porque sabes que sim.
Risos recortando papos sérios,
e aquela saudade de ouvir
quando há pouco já ouvidos mutuamente
—areia, pedra e cimento—,
fazem esse, teu e meu, nosso momento,
onde um —não por acaso, cuida do outro.

Mas dizia que não cabes num poema.
Não porque os faço com compasso,
tiro o prumo, ponho esquadro e tudo mais.
Não.

Porque és sublime.

E porque és sublime,
dou-te as mãos que escrevem os poemas.
Os olhos que os lêem.
Os ouvidos que ouvem os poemas ainda no devir.
Dou-te o cheiro dos poemas.
E os lábios que os dizem.

Antoniel Campos

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09/11/06

OMNIA VINCIT AMOR - 60




O Amor é um Género Literário

Pensei em escrever-te como se não existisse
ainda o feminismo. Como se o nosso tempo
não fosse o fim do século, nem ninguém conhecesse
a igualdade dos sexos, nem causasse estranheza
ouvir que te dissesse que o amor que eu sinto
por ti nunca poderias tu senti-lo por ninguém.
Talvez o amor seja apenas literatura
que muda com o tempo. Eu suponho que nós
não amamos como Shakespeare, nem Shakespeare como Dante
nem Dante como Safo, nem Safo como ninguém.

Carlos Martínez Aguirre

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08/11/06

LEITURAS - 26



"Duas horas da manhã. Os ratos procuram nos caixotes os restos do dia morto: a cidade pertence aos fantasmas, aos assassinos, aos sonâmbulos. Onde estás tu, em que leito, em que sonho? Se te encontrasse, tu passarias sem me ver pois não somos vistos pelos nossos sonhos. Não tenho fome: esta noite não consigo digerir a minha vida. Estou cansada: caminhei toda a noite para semear a tua recordação. Não tenho sono: nem sequer tenho apetite da morte. Sentada num banco, embrutecida apesar de tudo pela aproximação da manhã, deixo de me lembrar que te procuro esquecer. Fecho os olhos... os ladrões não querem senão os nossos anéis, os amantes a carne, os pregadores as nossas almas, os assassinos a vida. Podem tirar-me a minha: desafio-os a nada lhe mudar. Inclino a cabeça para ouvir por cima de mim o remexer das folhas... Estou num bosque, num campo... É a hora em que o Tempo se disfarça de varredor e Deus talvez em trapeiro. Ele avarento, ele teimoso, ele que não consente que se perca uma pérola nos montes de cascas de ostras às portas das tabernas. Pai nosso que estais no céu... Verei alguma vez vir sentar-se a meu lado um velho de sobretudo castanho, com os pés enlameados por ter tido, para me alcançar, de atravessar sabe Deus que rio? Ele deixar-se-ia cair no banco, tendo na mão fechada um presente muito precioso que seria o bastante para tudo mudar. Abriria os dedos lentamente, um após outro, muito prudentemente, por que aquilo foge... Que seguraria ele? Uma ave, um germe, uma faca, uma chave para abrir a lata de conserva do coração?”

Marguerite Yourcenar, Fogos
trad. Maria da Graça Morais Sarmento, Difel, 1995

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07/11/06

PÉROLAS - 92




“Só eu amei o amor de meus enganos."


Edgar Allan de Pöe

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06/11/06

LER OS CLÁSSICOS - 58


cena da Ilíada


Que importa, Diomedes, qual a minha linhagem?
A geração dos homens é igual à das folhas.
Se o vento arranca algumas e no chão as espalha,
ao vir a Primavera logo nascem mais outras.
E dos homens diremos que são como a folhagem.


Homero- Ilíada, Canto VI

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05/11/06

DE AMICITIA - 49

botticelli -mãos-pormenor de A Primavera

A Amizade é Indispensável ao Nosso Ser

A amizade é a única coisa cuja utilidade é unanimemente reconhecida. A própria virtude tem muitos detractores, que a acusam de ostentação e charlatanismo. Muitos desprezam as riquezas e, contentes de pouco, agradam-se da mediocridade.[…]

Ela se insinua, com efeito, não sei como, no coração de todos os homens e não se admite que, sem ela, possa passar nenhuma condição da vida.[…]
Assim, a natureza do homem se recusa à solidão, e parece sempre procurar um apoio: e não o há mais doce que o coração de um terno amigo.

Cícero, De amicitia -Diálogo sobre a Amizade

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04/11/06

PÉROLAS - 91


picasso

Das Utopias


Se as coisas são inatingíveis... ora!
não é motivo para não querê-las.
Que tristes os caminhos, se não fora
a mágica presença das estrelas!

Mário Quintana

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03/11/06

PENSAR - 55





Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais. Nunca o português tem uma acção sua, quebrando com o meio, virando as costas aos vizinhos. Age sempre em grupo, sente sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo.
Somos incapazes de revolta e de agitação. Quando fizemos uma "revolução" foi para implantar uma coisa igual ao que já estava. Manchámos essa revolução com a brandura com que tratámos os vencidos. E não nos resultou uma guerra civil, que nos despertasse; não nos resultou uma anarquia, uma perturbação das consciências. Ficámos miseravelmente os mesmos disciplinados que éramos.
Trabalhemos ao menos - nós, os novos - por perturbar as almas, por desorientar os espíritos. Cultivemos, em nós próprios, a desintegração mental como uma flor de preço. Construamos uma anarquia portuguesa.


Fernando Pessoa, O Jornal, 8-4-1915 (excertos)
in "O Banqueiro Anarquista", Fernando Pessoa, ed..Antígona.
Recordado em http://abrigodepastora.blogspot.com/

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02/11/06

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 26



foto:joão gomes



O cheiro de rosas velhas e tabaco
Faz-me recordar.
Há quase vinte anos
Que não te vejo
E prossegue o nosso meio amor.

Deixaste-me isto:
Esta mão, entreaberta, imóvel
Sobre uma colcha verde.
Coisa bastante para erguer
Alguns poemas de melancolia.

Tivesse eu então tocado em ti
Talvez um de nós sobrevivesse.


Ian Hamilton, Epitáfio

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01/11/06

OS MEUS POETAS - 62



Os Pássaros Brancos

Quem me dera que fôssemos, amor, pássaros brancos sobre a espuma do mar!
Cansamo-nos da chama do meteoro antes de ele fugir e se extinguir;
E a chama da estrela azul do crepúsculo, suspensa sobre a orla do céu,
Despertou nos nossos corações, amor, uma tristeza que não pode morrer.

Humedecida de orvalho chega uma lassitude daqueles que sonharam o lírio e a [rosa;
Oh, não sonhes com eles, amor, a chama do meteoro que passa,
Ou a chama da estrela azul que se detém suspensa na queda do orvalho,
Pois quem me dera que nos tornássemos pássaros brancos sobre a espuma
[errante: eu e tu!

Estou assombrado por inúmeras ilhas e muitas praias de Danaan*
Onde o Tempo certamente nos esqueceria e a Tristeza não mais se aproximaria [de nós;
Em breve estaríamos longe da rosa e do lírio e seríamos consumidos pelas chamas,
Se ao menos fôssemos pássaros brancos, amor, flutuando na espuma do mar!

William Butler Yeats
* Deuses da antiga Irlanda


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