31/10/08

DO FALAR POESIA -88



Cada poema faz esquecer o anterior,
apaga a história de todos os poemas,
apaga a sua própria história
e até apaga a história do homem
para ganhar um rosto de palavras
que o abismo não apague.

Também cada palavra do poema
faz esquecer a anterior,
desfilia-se por um momento
do tronco muitiforme da linguagem
e reencontra-se depois com as outras

[palavras
para cumprir o rito imprescindível
de inaugurar outra linguagem.

E também cada silêncio do poema
faz esquecer o anterior,
entra na grande amnésia do poema
e vai envolvendo palavra por palavra,
até sair depois e envolver o poema
como uma capa protectora
que o preserva dos outros dizeres.

Nada disto é raro.
No fundo,
também cada homem faz esquecer o anterior,
faz esquecer todos os homens.

Se nada se repete igual,
todas as coisas são últimas coisas.

Se nada se repete igual,
todas as coisas são também as primeiras.


Roberto Juarroz, in Poesia Vertical
-trad. Arnaldo Saraiva

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30/10/08

OS MEUS POETAS - 97



Do outono

Sem vento, a minha voz secou
aqui, neste parque de cedros quietos.

Tudo é como ontem era, mas a minha
voz, na minha face, calou-se,
porque só o vento me trazia a fala,
vinda de algures, com notícias de alguém,
indo para além, para outros ouvidos, num país.


Fiama Hasse Pais Brandão

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29/10/08

LEITURAS - 91




Noites Brancas

Era uma noite maravilhosa, uma dessas noites que apenas são possíveis quando somos jovens, amigo leitor. O céu estava tão cheio de estrelas, tão luminoso, que quem erguesse os olhos para ele se veria forçado a perguntar a si mesmo: será possível que sob um céu assim possam viver homens irritados e caprichosos? A própria pergunta é pueril, muito pueril, mas oxalá o Senhor, amigo leitor, lha possa inspirar muitas vezes!...Meditando sobre senhores caprichosos e irritados, não pude impedir-me de recordar a minha própria conduta — irrepreensível, aliás — ao longo de todo esse dia.Logo pela manhã, fora atormentado por um profundo e singular aborrecimento. Subitamente afigurou-se que estava só, abandonado por todos, que toda a gente se afastava de mim. Seria lógico, na verdade, que perguntasse a mim mesmo: mas quem é, afinal, «toda a gente»? Na realidade, embora viva há oito anos em São Petersburgo, quase não consegui estabelecer relações com outras pessoas. Mas que necessidade tenho eu de relações? Conheço já todo São Petersburgo e foi talvez por isso que me pareceu que toda a gente me abandonava, quando todo o São Petersburgo se ergueu e bruscamente partiu para o campo.Fui tomado pelo receio de me encontrar só e durante três dias inteiros errei pela cidade mergulhado numa profunda melancolia, sem nada compreender do que se passava comigo. Percorri a Perspectiva, fui ao Jardim, errei através do cais, e não vi sequer um dos rostos que encontrava habitualmente nesses mesmos locais, sempre à mesma hora e ao longo de todo o ano. Eles, evidentemente, não me conhecem, mas eu os conheço. Conheço-os intimamente. Estudei as suas fisionomias — sinto-me feliz quando estão alegres e fico acabrunhado quando se velam de tristeza. Estabeleci laços quase de amizade com um velhinho que todos os dias encontro, sempre à mesma hora, na Fontanka. Tem uma expressão muito grave e pensativa e sussurra permanentemente, falando consigo mesmo, agitando a mão esquerda enquanto com a direita segura uma longa e nodosa bengala com um castão de ouro. Ele próprio me reconhece, dedicando-me um cordial interesse. Se, por qualquer eventualidade, eu não aparecesse à hora do costume nesse tal sitio habitual na Fontanka, tenho a certeza de que teria um acesso de melancolia. Assim, sentimos, por vezes, a tentação de nos cumprimentarmos, principalmente, quando estamos ambos de bom humor. [...]

Dostoiewsky
,Noites Brancas (abertura)

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28/10/08

POETAS MEUS AMIGOS - 92



À mesa discutíamos que a nossa civilização legaria à história uma nova espécie de angústia, numa outra forma de aprisionamento; e encerrados entre os dois paraísos, nós, os banidos, sem poder ir ou voltar. Eu ouvia atento e buscava entre os outros os teus olhos castanhos – eu sei, e antes que esse mundo entre em colapso total, quero ainda esta noite, caminhar contigo de mãos dadas, na cidade de dois nomes.

Óscar Mourave

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27/10/08

DE AMICITIA - 83


4 meninas em Sarajevo - durante o cerco

- Ajudando a chorar


A menina chegou em casa atrasada para o jantar.Sua mãe tentava acalmar o nervoso pai enquanto pedia explicações sobre o que havia acontecido. A menina respondeu que tinha parado para ajudar Janie, sua amiga, porque ela tinha levado um tombo e sua bicicleta tinha - se quebrado.- "E desde quando você sabe consertar bicicletas?" perguntou a mãe.- "Eu não sei consertar bicicletas!" disse a menina. "Eu só parei para ajudá-la a chorar".

Murray Lancaster
Encontrado em http://msprof.blogspot.com/
foto de - foto de Gervasio Sanchez,em El País;encontrada em A terceira Noite - http://aterceiranoite.wordpress/

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26/10/08

DESASSOSSEGOS - 78



ninguém se lembra

De quem ao coração vai buscar água
ninguém se lembra nem
de quem por tê-lo
pregado à pele mostra os seus pregos ferrugentos.

luís miguel nava - poesia completa

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25/10/08

APONTAMENTOS





Le temps ne passe pas, il s'installe.
[ Denise Desautels ]
Extrait de «La Promeneuse et l'oiseau»

cit. em évène.com

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«ENSINOU A OBSERVAR EM VERSO» -13



Leite-creme

Nós podemos viver alegremente,
Sem que venham, com fórmulas legais,
Unir as nossas mãos eternamente,
As mãos sacerdotais.

Eu posso ver os ombros teus desnudos,
Palpá-los, contemplar-lhes a brancura,
E até beijar teus olhos tão ramudos,
Cor de azeitona escura.

Eu posso, se quizer, cheio de manha,
Sondar, quando vestida, p'ra dar fé,
A tua camisinha de bretanha,
Ornada de crochet.

Posso sentir-te em fogo, escandecida,
De faces cor-de-rosa e vermelhão,
Junto a mim, com langor, entredormida,
Nas noites de Verão.

Eu posso, com valor que nada teme,
Contigo preparar lautos festins,
E ajudar-te a fazer o leite creme,
E os mélicos pudins.

Cesário Verde - "Impossível"

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24/10/08

LEITURAS - 90

Os seis minutos mais
belos da história do
cinema

Sancho Pança entra num cinema de uma cidade de província. Está à procura de D. Quixote e encontra-o sentado a um canto, de olhos postos no écran. A sala está quase cheia, a galeria — que é uma espécie de varanda — está inteiramente ocupada por crianças barulhentas. Depois de algumas tentativas inúteis de ir ter com D. Quixote, Sancho senta-se contrariado na plateia, junto de uma menina (Dulcineia?) que lhe oferece um chupa-chupa. A projecção começou, é um filme de época, no écran correm cavaleiros armados, a certa altura aparece uma dama em perigo. De repente, D. Quixote levanta-se, desembainha a espada, precipita-se contra o écran e os seus golpes começam a rasgar a tela. No écran ainda se vêem os cavaleiros e a dama, mas o rasgão negro, aberto pela espada de D. Quixote, vai-se alargando cada vez mais, devora implacavelmente as imagens. No fim, do écran já quase nada resta, vê-se apenas a estrutura de madeira que o sustentava. O público, indignado, abandona a sala mas, na galeria, as crianças não param de encorajar fanaticamente D. Quixote. Só a menina da plateia o contempla com ar de censura.Que devemos fazer com as nossas imaginações? Amá-las, acreditar nelas, a tal ponto que temos de as destruir, falsificar (talvez seja este o sentido do cinema de Orson Welles). Mas quando, no fim, elas se revelam ocas, inatingíveis, quando mostram o nada de que são feitas, só então podemos descontar o preço da sua verdade, compreender que Dulcineia — que salvámos — não pode amar-nos.


Giorgio Agamben, "Profanações"

encontrado em http://last-tapes.blogspot.com/

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23/10/08

NOCTURNOS - 60


Re - Declaração de Romance

A noite nada sabe dos cantos da noite
É o que é como eu sou o que sou:
E em percebendo isto percebo-me melhor

E percebo-te melhor. Só nós dois podemos trocar
Um no outro o que cada um tem para dar.
Só nós dois somos um, não tu e a noite,

Nem a noite e eu, mas tu e eu, sozinhos,
Tão sozinhos, tão profundamente nós mesmos,
Tão para lá das casuais solidões,

Que a noite é apenas um fundo para nós,
Supremamente fiel cada um ao seu próprio eu,
Na pálida luz que um sobre o outro lança.


Wallace Stevens
Tradução: Paulo Venâncio Filho

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22/10/08

PENSAR - 86


foto de laurie turner


É difícil arrumar os dias”

A frase, dita por um amigo, há alguns dias, vinha a propósito do quotidiano a que a alma humana se prende. Quem somos, para onde vamos, porque existimos afinal?
...
É muito difícil arrumar os dias, atender a família, as contas, a roupa dos miúdos, a cozinha, o trabalho, os sentimentos bons e a raiva por todas injustiças em que tropeçamos quando mergulhamos no drama do princípio do fim da vida.


No meio disto tudo para serve afinal a literatura? A que servirá uma pequena e humilde crónica? A literatura mantém-nos à tona da água. As palavras são uma luz no horizonte. No dia em que deixarmos de ouvir o ronronar dos gatos, de ter alguém que perto ou longe nos sussurre algo ou não soubermos encontrar um pouco de consolo nas páginas de um livro estaremos definitivamente mortos.


Sílvia Alves

Crónica em Região de Leiria - em 17.10.08

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21/10/08


O Do Inatingível (http://inatingivel.wordpress.com/) teve a gentileza, que. muito agradeço, de me atribuir o prémio Dardos. Na sequência das regras estabelecidas, aqui vai uma pequena lista de blogues de entre muitos outros que mereceriam igualmente a distinção (muitos que eu escolheria já constam da lista de Do Inatingível):
http://www.vozromazeira.blogspot.com/
http://esquerda-da-virgula.blogspot.com/
http://ventosdesencontrados.blogspot.com/
http://www.meublog.net/adelaideamorim/
http://www.ortografiadoolhar.blogspot.com/
http://puracoincidencia.blogspot.com/
http://aguarelast.blogspot.com/
http://www.cadernos-amf.blogspot.com/
http://www.finisterra.blogger.com.br/
http://amata.anaroque.com/
-
http://um-buraco-na-sombra.netsigma.pt/
http://innersmile.livejournal.com/
http://asombradospalmares.blogspot.com/
http://papelderascunho.net/
http://ler.blogs.sapo.pt/

Informações sobre o Prémio Dardos:Com o Prémio Dardos reconhecem-se os valores que cada blogueiro emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc. que, em suma, demonstram sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre suas letras, entre suas palavras. Esses selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre os blogueiros, uma forma de demonstrar carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à Web.Ao recebermos e aceitarmos o “Prémio Dardos” devemos seguir algumas regras:
1. - Exibir a imagem do selo;
2. - Linkar o blogue que lhe atribuiu o prémio;
3. - Entregar o Prémio Dardos a quinze (15) outros blogues .

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POETAS MEUS AMIGOS -91



Mínimo


Saudade da maré-cheia,
dos pequenos barcos tristes
com o exacto

tamanho dos meus anseios

Soledade Santos
http://nocturnocomgatos.weblog.com.pt/

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20/10/08

PÉROLAS - 147



Eu queria trazer-te uns versos muito lindos...
Trago-te estas mãos vazias
Que vão tomando a forma do teu seio.
Mario Quintana

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19/10/08

DO FALAR POESIA - 87



"A poesia é órfã do silêncio. As palavras nunca correspondem exactamente à experiência que está por trás delas".

Charles Smic

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18/10/08

OMNIA VINCIT AMOR - 109




O Amor é um deus de paz.
Só a paz veneramos
nós outros, os amantes.

Propércio –s.I a.c
Trad. de David Mourão-Ferreira

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17/10/08

REVIVALISMOS - 20

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LEITURAS- 89



" Não posso acreditar", disse Alice." Ai não?", perguntou a Rainha Branca em tom condoído." Tenta outra vez; inspira fundo e fecha os olhos."Alice riu, " Não vale a pena tentar", disse: "Uma pessoa não pode acreditar em coisas impossíveis. " Atrevo-me a dizer que não tens muita prática ", disse a Rainha. " Quando tinha a tua idade, fazia sempre isso meia hora por dia. Ora, cheguei a acreditar em seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço.»

Lewis Carroll-Alice no país das Maravilhas
Cit. em http://www.theresonly1alice.blogspot.com/

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16/10/08

DE AMICITIA -82



Bons amigos

Abençoados os que possuem amigos,
os que os têm sem pedir.
Porque amigo não se pede,
não se compra, nem se vende.
Amigo a gente sente!

Benditos os que sofrem por amigos,
os que falam com o olhar.
Porque amigo não se cala,
não questiona, nem se rende.
Amigo a gente entende!

Benditos os que guardam amigos,
os que entregam o ombro pra chorar.
Porque amigo sofre e chora.
Amigo não tem hora pra consolar!

Benditos sejam os amigos que
acreditam na tua verdade
ou te apontam a realidade.
Porque amigo é a direção.
Amigo é a base quando falta o chão!

Benditos sejam todos os amigos
de raízes, verdadeiros.
Porque amigos são herdeiros
da real sagacidade.
Ter amigos é a melhor cumplicidade!

Há pessoas que choram por saber
que as rosas têm espinho,
Há outras que sorriem por saber
que os espinhos têm rosas!

Machado de Assis

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15/10/08

ESCREVER - 73

.

[a maravilha que deve ser escrever um livro]

(...) a maravilha que deve ser escrever um livro: a invenção dentro da memória; a memória dentro da invenção; e toda essa cavalgada de uma grande fuga, todo esse prodígio de umas poligâmicas núpcias, secretas e arrebatadas, com a feminina multidão das palavras: as que se entregam, as que se esquivam; as que é preciso perseguir, seduzir, ludibriar; as que por fim se deixam capturar, palpar, despir, penetrar e sorver, assim proporcionado, antes de se evaporarem, as horas supremas de um amor feliz. Não há matéria mais carnalmente incorpórea; nem outra mais disposta a por amor ser fecundada. Como se pode interpretar de outro modo esse velho lugar-comum de ter um filho, plantar uma árvore, escrever um livro? Só se em todos os casos se tratar de grandes e inevitáveis actos de amor: com a Mulher, com a Terra, com a Língua. Mas de plantar árvores e ter filhos haverá sempre muita gente que se encarregue. De destruir árvores também; de estragar filhos igualmente um livro, um livro que viva, multiplicado, durante alguns anos ou alguns séculos, e que depois vá morrendo, sem ninguém dar por isso, mas nunca de uma só vez, até ser enterrado na maior discrição ou até se ver de súbito renascido, inesperadamente ressuscitado, um livro com semelhante destino - luminoso por mais obscuro, obscuro por mais luminoso -, isto é que foi sempre o que me empolgou.

David Mourão-Ferreira, in 'Um Amor Feliz'

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14/10/08

LER OS CLÁSSICOS - 99




Prometeu


Cobre o teu céu, ó Zeus,
De vapores de nuvens!
E ensaia, como um rapaz
Que decapita cardos,
As tuas artes em carvalhos e cumes!
A minha terra, essa
Tens de deixar-ma,
E a minha cabana,
Que não construíste,
E o meu lume,
Cujo fogo
Me invejas.

Nada conheço de mais pobre
Sob o Sol que vós, deuses.
Mal conseguis alimentar
Com tributos de oferendas
E o sopro de orações
A vossa majestade,
E morreríeis à míngua se não
Fossem crianças e pedintes,
Loucos cheios de esperança.

Quando eu era criança,
Sem saber que pensar nem que fazer,
Voltava para o Sol os olhos
Perdidos, como se lá em cima houvesse
Um ouvido para o meu lamento,
Um coração como o meu
Para se compadecer dos oprimidos.

Quem me ajudou contra
A arrogância dos Titãs?
E da morte quem me salvou,
Da escravidão?
Não fizeste tu tudo sozinho,
Coração, com teu fogo sagrado?
E não ardeste tu, jovem e bom,
Enganado, dando graças de salvação
Aos deuses adormecidos lá em cima?

Eu, venerar-te? Para quê
Aliviaste tu alguma vez
As dores dos que sofrem?
Alguma vez secaste as lágrimas
Dos angustiados?
E quem forjou em mim o Homem, se não
O Tempo todo poderoso
E o Destino eterno,
Meus e teus senhores?

Pensaste porventura
Que eu havia de odiar a vida,
Fugir para os desertos,
Porque não deram fruto todos os sonhos
Que despontaram na aurora da juventude?
Aqui estou eu, criando Homens
À minha imagem,
Uma estirpe igual a mim,
Que sofra e chore,
Goze e se alegre,
E te não respeite,
Como eu.

Johann Wolfgang Goethe (1749-1832)
Tradução de João Barrento.

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13/10/08

O PRAZER DE LER - 88




Zauberbuch

(A Jorge Luis Borges)

Todos
os livros
- os Sutras, o Corão,
os Vewdas, o Zohar -
são enigmas:
jardins verticais,
rios insubmissos,
listras de mármore possesso;
todas as páginas
- em lâminas de argila,
pelo de carneiro,
folhas de papiro
ou rubro ouro esculpido -
são impossíveis,
viscerais,
areia alucinada.
Os livros, Borges,
inventam os leitores
e os nomes de vales, savanas, estepes
e de amplas avenidas
que ignoramos;
vivemos
essa efêmera realidade
para lermos suas secretas linhas,
e assim
nossos filhos e netos.
Um dia, porém, os livros
- últimos demiurgos -
desaparecerão,
como o grifo e o licorne
e ler será apenas lenda.

Claudio Daniel, in Yumê.

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12/10/08

NOCTURNOS - 59



Dindinha - Lua

__ "A bênção, Dindinha-Lua!
A bênção, Dindinha-Lua!"

E a lua vinha por trás da serra
redonda e branca como uma roda
de andor de carro de procissão...
Lírios choviam por sobre a terra...

Ficava tudo branco... branquinho...
telhados... casas...torres...caminho...
Ficava tudo como algodão...

E a meninada corria à rua,
gritando todos , em profusão,
olhos erguidos, erguida a mão:

__ "A bênção, Dindinha-Lua!
A bênção, dindinha-Lua!"

E a lua branca, num grande véu,
Velhinha boa, subia o céu...
__Dindinha-Lua, dá-me um vestido!...

__Dindinha-Lua, dá-me um dinheiro!
Cada menino tinha um pedido,
cada um queria pedir primeiro...

Meus amiguinhos! Que longe vão!
Que doce e grata recordação!

E ah! Quantas vezes, hoje, no outono
da minha vida, nesse abandono
de alma que punge desolador,
se vejo a lua nascer da serra,
redonda e branca como uma roda
de andor de carro de procissão,
sinto um aperto no coração.

E erguendo os olhos ao céu, sozinho,
digo a mim mesmo, muito baixinho,
muito comigo, cheio de ardor:

Dindinha-Lua, dá-me um carinho!
__Dindinha-Lua, dá-me um amor!


Adelmar Tavares / Noite Cheia de Estrelas

in Poesias Completas

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11/10/08

ANO VIEIRINO - 13


[…] nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Portanto, só existimos nos dias em que fazemos. Nos dias em que não fazemos apenas duramos.[...]

Padre António Vieira, Sermões

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10/10/08

«ENSINOU A OBSERVAR EM VERSO» -12



Cristalizações
A Bettencourt Rodrigues, meu amigo.

Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
Vibra uma imensa claridade crua.
De cócaras, em linha os calceteiros,
Com lentidão, terrosos e grosseiros,
Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as elevações secaram do relento,

E o descoberto Sol abafa e cria!
A frialdade exige o movimento;
E as poças de água, como um chão vidrento,
Reflectem a molhada casaria.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha

[ agita,
Disseminadas, gritam as peixeiras;
Luzem, aquecem na manhã bonita
Uns barracões de gente pobrezita
E uns quintalórios velhos, com parreiras.

Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!

Tomam por outra parte os viandantes;
E o ferro e a pedra - que união sonora!
- Retinem alto pelo espaço fora,
Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros ,

[ baços,
Cuja coluna nunca se endireita,
Partem penedos. cruzam-se estilhaços.
Pesam enormemente os grossos maços,
Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!

Que espessos forros! Numa das regueiras
Acamam-se as japonas, os coletes;
E eles descalçam com os picaretes
Que ferem lume sobre pederneiras.

E neste rude mês, que não consente as flores,

Fundeiam, como esquadra em fria paz,
As árvores despidas. Sóbrias cores!
Mastros, enxárcias, vergas! Valadores
Atiram terra com as largas pás...

Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande

[agente!
Carros de mão que chiam carregados,
Conduzem saibro, vagarosamente;
Vê-se a cidade, mercantil, contente:
Madeiras, águas, multidões, telhados!

Negrejam os quintais; enxuga a alvenaria;

Em arco, sem as nuvens flutuantes,
O céu renova a tinta corredia;
E os charcos brilham tanto que eu diria
Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem muito embora, os fracos, os tolhidos,

Eu tudo encontro alegremente exacto,
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
E tangem-me, excitados, sacudidos,
O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem

De tão lavada e igual temperatura!
Os ares, o caminho, a luz reagem;
Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal encarado e negro, um pára enquanto

[eu passo;
Dois assobiam, altas as marretas
Possantes, grossas, temperadas de aço;
E um gordo, o mestre, com ar ralaço
E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim as bestas vão

[curvadas!
Que vida tão custosa! Que diabo!
E os cavadores descansam as enxadas,
E cospem nas calosas mãos gretadas,
Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas

Uma bandeira penso que transluz!
Com ela sofres, bebes, agonizas;
Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,

Surge um perfil direito que se aguça;
E ar matinal de quem saiu da toca,
Uma figura fina, desmboca,
Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento

E a quem, à noite, na plateia, atraio
Os olhos lisos como polimento!
Com seu rostinho estreito, friorento,
Caminha agora para o seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados

Como lajões. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezírias, dos montados:
Os das planícies, altos, aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,

Furtiva a tiritar em suas peles,
Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
Neste Dezembro enérgico, sucinto,
E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada

[ esquente,
Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Encaram-na, sanguínea, brutamente:
E ela vacila, hesita, impaciente
Sobre as botinas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,

Sem que inda o público a passagem abra,
O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
Com seus pezinhos rápidos, de cabra!

Lisboa, Inverno de 1878

Cesário Verde

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09/10/08

PÉROLAS - 146



A missão das folhas

Naquela tarde quebrada
contra o meu ouvido atento
eu soube que a missão das folhas
é definir o vento

Ruy Belo

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08/10/08

PENSAR - 85



A vida depois de Deus


Ora eu sou uma pessoa afectuosa, mas custa-me muito mostrá-lo.Quando era mais novo, costumava preocupar-me muito a ideia de ficar só, de ninguém me amar ou de ser incapaz de amor. À medida que os anos foram passando, as minhas preocupações mudaram. Passei a temer ter-me tornado incapaz de uma relação, de oferecer intimidade. Sentia-me como se o mundo vivesse dentro de uma casa confortável à noite e eu estivesse cá fora, e ninguém me visse por estar cá fora de noite. Mas agora estou dentro da casa e sinto-me precisamente na mesma. Aqui sozinho, agora, todos os meus medos irrompem, os medos que julguei enterrar para sempre quando me casei: medo da solidão; medo de que estar sempre a apaixonar-me e a desapaixonar-me tornasse mais difícil amar; medo de nunca sentir o verdadeiro amor; medo de que alguém se apaixonasse por mim, ficasse extremamente próximo, a saber tudo de mim, e depois desligasse a ficha; medo de que o amor só fosse importante até certo ponto depois do qual tudo é negociável.Durante muitos anos, vivi uma vida solitária e achava a vida boa. Mas sabia que se não explorasse a intimidade e partilhasse a intimidade com mais alguém, a vida nunca iria além de certo ponto. Lembro-me de pensar que, se não soubesse o que ia dentro de outra cabeça além da minha, ia explodir.

douglas coupland - a vida depois de deus
trad. telma costa

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07/10/08

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 59





Cultivo uma rosa branca


– Cultivo uma rosa branca,
em julho como em janeiro,
para o amigo verdadeiro
que me estende sua mão franca.

E para o mau que me arranca
o coração com que vivo,
cardo ou urtiga não cultivo:
cultivo uma rosa branca.


José Martí

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06/10/08

POETAS MEUS AMIGOS - 90



Tenho trato com o vento. Ele traz-me os cheiros do meu amor e leva-lhe os meus recados. E faz muito bem o que tem de fazer. Se a porta está fechada, pára e espera com muita paciência. Não vai pela janela, que não é entrada das pessoas. Quando a porta se abre, vai devagarinho e sem barulho pôr uma flor na cama do meu amor. Leva o meu cheiro e umas gotas a reluzir.podem ser do orvalho ou gotas salgadas. Espero com a paciência do vento.
Zef - in a voz da romãzeira http://www.vozromazeira.blogspot.com/

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05/10/08

5 de outubro - feriado em Portugal

data de múltiplas comemorações




assinatura do Tratado de Zamora em 1143 - Independência de Portugal





Dia da República, implantada em 1910

e ainda

- este ano, entre nós, com o lema «Os professores contam», proposto pela UNESCO e adoptado por várias organizações da classe em Portugal

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04/10/08

LER OS CLÁSSICOS - 98



Fera sou deste lugar sombrio
e com uma flecha no ombro
fujo, triste, ao cabo da minha dor
e o cerco que lentamente me agrilhoa.

Como a ave que o fogo arde
entre as plumas, a fugir num voo
do seu ninho quente, e ao debandar
o fogo aviva com as próprias asas.

Assim eu entre a aurora estival e as sombras,
voando alto com as asas do desejo,
tento escapar do fogo que me queima.

Quanto mais eu voo entre as margens
fugindo deste mal, com um salto feroz
sobre a morte lenta, procuro a vida curta.


Chiara Matrani
(Itália, 1514-1598)
tradução: Jorge Henrique Bastos
em Rosa do Mundo – Assírio & Alvim, 2001

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03/10/08

Lançamento e convite

« Como balanço e produto da reflexão que fiz para vos contar a minha vida, direi: Tenho gosto em me ter batido por causas, como pregador, missionário e diplomata ao serviço do meu país, advogando a correcção dos maus costumes, por parte dos colonos, dos nobres e até dos clérigos, o empenhamento de todos no apoio ao rei e à guerra contra Espanha, o fim da exploração do homem pelo homem, que implicava também a defesa intransigente dos índios e dos escravos negros, pela sua libertação ou, pelo menos, defendendo que fossem tratados com humanidade; não esqueci nunca os judeus injustamente expulsos e perseguidos, bem como os cristãos - novos, espoliados pela Inquisição.
Nem sempre convenci, nem sempre ganhei tais batalhas pelas quais estava disposto a dar a própria vida, Angariei amigos em Portugal, na Europa, entre os judeus portugueses exilados, e também em Roma e no Brasil. Em contrapartida, sofri a fúria dos interesses estabelecidos contra os quais lutei...»»


- palavras do Padre António Vieira, narrando-se na 1ªpessoa, em que a autora se faz dele escriba de serviço, dando-o a conhecer aos mais novos; livro que é complementado com uma selecção de textos de Sermões e Cartas do «imperador da língua portuguesa».


[ da contracapa do meu livro Padre António Vieira - O Imperador da Língua Portuguesa - Lançamento sábado, dia 11 de outubro, pelas 17,30 na Livraria Arquivo em Leiria.O livro será apresentado pelo prof.Dr.José Augusto Cardoso Bernardes,da faculdade de letras da U,Coimbra.Serão lidos excertos de sermões e cartas por Mercília Francisco e Álvaro Mendonça]

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02/10/08

POETAS MEUS AMIGOS - 89



as orquídeas brancas debruçadas
enfileiravam-se
a subir pela haste
-pelo poema-
subiam como palavras
essenciais de beleza.

silvia chueire

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01/10/08

ENSINOU A OBSERVAR EM VERSO - 11


claude monet,les coquelicots



de tarde


Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de ló , molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Cesário Verde

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