05/09/09

LEITURAS - 119




Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: "Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames". Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem. O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilómetros de Argel.Tomo o autocarro das duas horas e chego lá à tarde. Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanhã à noite. Pedi dois dias de folga ao meu patrão e, com uma razão destas, ele não mos podia recusar. Mas não estava com um ar lá muito satisfeito. Cheguei mesmo a dizer-lhe: "A culpa não é minha". Não respondeu. Pensei então que não devia ter dito estas palavras. A verdade é que eu não tinha nada que me desculpar. Ele é que tinha de me dar os pêsames. Mas com certeza o fará, depois de amanhã, quando me vir de luto. Por agora, é um pouco como se a mãe não tivesse morrido. Depois do enterro, pelo contrário, será um caso arrumado e tudo passará a revestir-se de um ar mais oficial. Tomei o autocarro às duas horas. Estava muito calor. Como de costume, almocei no restaurante do Celeste. Estavam todos com muita pena de mim e o Celeste disse-me: "Mãe, há só uma". Quando saí, acompanharam-me à porta. Estava um bocado atordoado e tive que ir a casa do Manuel, para lhe pedir emprestados um fumo e uma gravata preta. O Manuel perdeu o tio, há meia dúzia de meses.Tive de correr para não perder o autocarro. Esta pressa, esta correria e, talvez, também os solavancos, o cheiro da gasolina, a luminosidade da estrada e do céu, tudo isto contribuiu para que eu adormecesse no caminho.

Albert Camus, início de O Estrangeiro, (1949)-ed. Livros do Brasil
Tradução: António Quadros

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