31/03/10

LER OS CLÁSSICOS - 124



Canção da primavera

Na primavera florescem os marmeleiros
e as romãzeiras, regadas
pelas águas dos rios,
lá onde fica das Virgens o jardim imaculado,
e os gomos das videiras crescem sob os rebentos
umbrosos dos pâmpanos; mas a mim o Amor
não me dá estação alguma de descanso:
como o trácio Bóreas, deflagrando
com o trovão, soprando do lado de Cípria,
com loucura devastadora,
tenebroso e sem peias,
sacode de alto a baixo com força
o nosso coração.

Íbico (Grécia,s.VI a.C)

(in Hélade – Antologia da Cultura Grega, organização e tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, 10ª edição: Guimarães editores, 2009)
Publicado em http://ruialme.blogspot.com/

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30/03/10

O (des) PRAZER DE LER -112

Cesare Pavese já tinha concluído que Lavorare stanca - Trabalhar cansa (belíssimo livro de poemas).Agora é o cansaço da literatura.Para reflectirmos...



O cansaço da literatura


Entre os sinais que me avisam de que a juventude terminou, o principal é aperceber-me de que a literatura já não me interessa verdadeiramente. Quero dizer que já não abro os livros com aquela viva e ansiosa esperança de coisas espirituais que, apesar de tudo, outrora sentia. Leio e quereria ler cada vez mais, mas já não recebo as várias experiências com entusiasmo, já não as fundo num sereno tumulto pré-poético. A mesma coisa acontece-me ao passear por Turim; já não sinto a cidade como um incentivo sentimental e simbólico para a criação. "Já está feito", dá-me vontade de responder de cada vez. Tomadas em justa conta as minhas várias equimoses, obsessões, fadigas e terrenos estéreis, resulta claro que já não sinto a vida como uma descoberta e, muito menos, então, como poesia - mas, antes, como um frio material para especulações, análises e deveres. Aqui encalha, agora, a minha vida: a política, a prática, tudo coisas que se aprendem nos livros, mas os livros não alimentam como o faz, pelo contrário, a esperança de criação. Ora, quando novo, procurava um sistema ético: descoberta a posição do impassível explorador, vivia-a e desfrutava-a sob a forma de criação. Agora, que deixei definitivamente de a desfrutar sob a forma de criação, apercebo-me de que não serve, sequer, para viver. Eis um grave dilema: perdi tempo, até agora, ao escolher a poesia, ou o estado atual é premissa de mais profunda e vital criação?

Cesare Pavese

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28/03/10

NO DUPLO CENTENÁRIO DE ALEXANDRE HERCULANO




Ontem, sentado num penhasco, e perto
Das águas, então quedas, do oceano,
Eu também o louvei sem ser um justo:
E meditei, e a mente extasiada
Deixei correr pela amplidão das ondas.

Como abraço materno era suave
A aragem fresca do cair das trevas,

Enquanto, envolta em glória, a clara Lua
Sumia em seu fulgor milhões d' estrelas.

Tudo calado estava: o mar somente
As harmonias da criação soltava,
Em seu rugido; e o ulmeiro do deserto
Se agitava, gemendo e murmurando,
Ante o sopro de oeste: ali dos olhos
O pranto me correu, sem que o sentisse,
E aos pés de Deus se derramou minha alma.


Alexandre Herculano

(28 de Março de 1810 a 13-de set. de 1877)

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LER CLÁSSICOS -123



As cousas que não têm cura
Amador, não cures delas,
e as que não têm ventura
não te aventures por elas.

Bernardim Ribeiro - excerto de écloga

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27/03/10

CAMONIANAS - 61




Pede o desejo, Dama, que vos veja;
Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que, quem o tem, não sabe o que deseja.

Não há cousa, a qual natural seja,
Que não queira perpétuo o seu estado;
Não quer logo o desejo o desejado,
Por que não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro afeito em mim se dana;
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da Natureza,

Assi o pensamento, pela parte
Que vai tomar de mim, terrestre, humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.


Luís de Camões -Sonetos

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26/03/10

«UMA ATITUDE SE IMPÕE - AFRONTAMENTO» - 28

coragem1

Enquanto prometemos o dia da coragem

O mal vem aos rostos e mata o coração.
Tivemos de aprender a dor civicamente:
o olhar ferido por inexpressões
o assobio das faces carcereiras
essa armação da voz, as predações
– e sempre tudo dentro
de espelhos verdadeiros, salões de festas, lustres…

Carlos Poças Falcão

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25/03/10

LEITURAS - 135



"... Porque amamos sempre a pessoa diferente, procuramo-la em todas as situações e variantes da vida... O maior segredo e dádiva da vida, quando duas pessoas semelhantes se encontram... Isso é tão raro, como se a natureza impedisse com força e astúcia essa harmonia - talvez porque para a criação do mundo e para a renovação da vida necessita da tensão que se gera entre as pessoas que se procuram eternamente, mas que têm intenções e ritmos de vida opostos...

Sándor Márai, in ‘As Velas Ardem Até ao Fim’

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24/03/10

POETAS MEUS AMIGOS - 126



Cigarras


Nesta primavera
as cigarras cantam diferente.

Há retidos gestos de adeus
nas retinas
e saudades nas horas.

Longos olhos miram
longamente as sombras
à procura de duendes.

Olhos feito punhais cravam-se
em meus olhos: detém-se
o jorro de palavras.

Emoções rompem as eclusas
e a poesia nasce, tímida planta,
nos áridos campos onde plantei
a semente de todas as palavras.

Fausto Rodrigues do Valle
( poema publicado em A Fonte do Sal, 1988)

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23/03/10

Gelsomina

Falecida em 23 de março de 1994, Giulietta Masina ficará sempre para nós como a grande actriz que foi, musa de Fellini - celebrada por Caetano Veloso numa belíssima canção, e por tantos, como eu, que continuam a rever os seus filmes.

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POEMAS COM ROSAS DENTRO - 80




As rosas do tempo

Admirável espírito dos moços,
a vida te pertence. Os alvoroços,

são as iras e entusiasmos que cultivas
são a rosa do tempo, inquietas, vivas.

Erra e procura e sofre e indaga e ama,
que nas cinzas do amor perdura e flama.

Carlos Drummond de Andrade

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22/03/10

O PRAZER DE LER -108


George Steiner

Um Mestre de Leitura

[...]
Gostaria de ser recordado - por pouco que perdure nas memórias- como um mestre da leitura, como alguém que passou a vida a ler com os outros. Para conhecermos bem o acto de leitura, devemos servir-nos das análises muito finas de Charles Péguy que deu na sua obra o exemplo de uma definição em filigrana e densa, intensa e cheia daquilo que uma leitura bem feita implica. É uma leitura que implica uma responsabilidade, e neste termo contém-se o de resposta. Trata-se portanto de responder a um texto, à presença e à voz de outrem. E isso tornou-se difícil senão impossível numa cultura onde o ruído é constante, que não tem de reserva uma prata de silêncio ou sequer de paciência. Entendo a paciência na sua acepção do sec XVII, quando a etimologia prevalecia em certas fórmulas, dando a "paciência" ou a "sofrer" um sentido que hoje se desvanece. Ler não é sofrer, mas falando com propriedade, estarmos prontos a receber em nossa casa um convidado, ao caír da noite.
[...]
Trata-se de corrermos o risco de que uma noite, um texto, um quadro, uma sonata, batam à porta da nossa morada- o meu livro Presenças Reais foi todo ele construído em torno desta imagem- quando é possível que o convidado destrua e incendeie a casa inteira. Pode ser também que nos roube e a deixe vazia! Mas temos de aceitar tomar o texto dentro de nós, e não sei como dizer a riqueza dessa experiência que vivi mil vezes, nomeadamente ao ler a Ética , de Espinosa, que é para mim uma referência última. Acolhe-me, sem se explicar e eu acedo finalmente ao poema.

[...]


George Steiner - Em entrevista a Ramin Jahanbegloo ( Quatro entrevistas com George Steiner ) Fenda edições

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21/03/10

DO FALAR POESIA -110

NO TEMPO DA «FROL» / - DIA INTERNACIONAL DA POESIA


Aconteceu poesia

A poesia não é tão rara como parece.
Na mais ínfima das coisas
A poesia acontece.
Aconteceu poesia
Quando nos teus olhos cor do céu
Vi um pedaço de céu que me cabia.
Aconteceu poesia
Quando as tuas mãos numa carícia vaga
Moldaram no meu rosto ar de angústia
Que o tempo não apaga.
Aconteceu poesia
Quando nos teus olhos cor do céu
Vi um pedaço de céu que me fugia.
Até no dia em que morreste,Mãe,
Aconteceu poesia.

Fernando Vieira

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20/03/10

Jacques BREL - Au Printemps

Au printemps

Au printemps au printemps
Et mon cœur et ton cœur
Sont repeints au vin blanc
Au printemps au printemps
Les amants vont prier
Notre-Dame du bon temps
Au printemps
Pour une fleur un sourire un serment
Pour l'ombre d'un regard en riant

Toutes les filles
Vous donneront leurs baisers
Puis tous leurs espoirs
Vois tous ces cœurs
Comme des artichauts
Qui s'effeuillent en battant
Pour s'offrir aux badauds
Vois tous ces cœurs
Comme de gentils mégots
Qui s'enflamment en riant
Pour les filles du métro

Au printemps au printemps
Et mon cœur et ton cœur
Sont repeints au vin blanc
Au printemps au printemps
Les amants vont prier
Notre-Dame du bon temps
Au printemps
Pour une fleur un sourire un serment
Pour l'ombre d'un regard en riant

Tout Paris
Se changera en baisers
Parfois même en grand soir
Vois tout Paris
Se change en pâturage
Pour troupeaux d'amoureux
Aux bergères peu sages
Vois tout Paris
Joue la fête au village
Pour bénir au soleil
Ces nouveaux mariages

Au printemps au printemps
Et mon cœur et ton cœur
Sont repeints au vin blanc
Au printemps au printemps
Les amants vont prier
Notre-Dame du bon temps
Au printemps
Pour une fleur un sourire un serment
Pour l'ombre d'un regard en riant

Toute la Terre
Se changera en baisers
Qui parleront d'espoir
Vois ce miracle
Car c'est bien le dernier
Qui s'offre encore à nous
Sans avoir à l'appeler
Vois ce miracle
Qui devait arriver
C'est la première chance
La seule de l'année

Au printemps au printemps
Et mon cœur et ton cœur
Sont repeints au vin blanc
Au printemps au printemps
Les amants vont prier
Notre-Dame du bon temps
Au printemps

Au printemps
Au printemps

Jacques Brel

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OS MEUS POETAS -174





Me gusta que Epicuro se preocupe
para Ana Gorría

Me gusta que Epicuro se preocupe
por la forma redonda del granizo.

Que Francisco de Asís diga que el agua es casta
y el fuego, robusto.

Que en una breve carta a uno de sus amigos
Marguerite Yourcenar escriba «Gracias.
Gracias por el honor de compararme
con un árbol».

No sé por qué, estas cosas
curan mi corazón.
.
Juan Antonio González Iglesias
Encontrado em http://www.laurenmendinueta.com/

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19/03/10

HOJE É DIA DO PAI



Meu pai no mercado de flores


De manhã,meu pai vai ao mercado.
Essa não é (dizem) coisa de homem.
Mas ele ri-se,pouco se interessa.

Dedica a tudo todo o cuidado.
a barba feita a navalha, o nó
da gravata, o vinco da calça,
o colete de malha. Sapato
preto, polainito apertado,
põe o chapéu. Ainda bem cedo,
sob o esplendor azul do céu.

E a casa,depois,fica cheia
de luz e ternura, gladíolos
frésias, verbenas, rosas bravas,
cheiros dos jardins de Freamunde,
poemas sem o peso das palavras.


José Carlos de Vasconcelos

In Em nome do Pai- Pequena antologia do Pai na Poesia Portuguesa
-org.por José da Cruz Santos, com a colaboração de Vasco da Graça Moura e Armando Alves,Prisa/Inova e Modo de Ler, 2010

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POETAS MEUS AMIGOS - 125




para Adrilene



toda vez que fico
triste lembro me das ausências de meu
pai e da solidão de minha
mãe sempre que

me perco lembro
te chamando os nomes
invisíveis das nuvens e dos
pássaros engaiolados

toda vez que me alegro ri
em mim o sorriso de alice as
melodias brandas de teu
olhar sempre

que adormeço inundo
me de teus braços da
vertigem desnuda de teu
corpo

a vida
quase
sempre
tem sentido

Adair Carvalhais Júnior

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18/03/10

Mikis Theodorakis- Maria Farantouri: MARINA - ΜΑΡΙΝΑ

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PÉROLAS - 190



Encontrei as palavras para todos
Os meus pensamentos - excepto Um -
E isso - é um desafio para mim -
Como escrever a giz no Sol.

Emily Dickinson

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17/03/10

PENSAR - 110



A Nostalgia da Europa

Na Idade Média, a unidade europeia repousava na religião comum. Nos Tempos Modernos, ela cedeu o lugar à cultura (à criação cultural) que se tornou na realização dos valores supremos pelos quais os Europeus se reconhecem, se definem, se identificam. Ora, hoje, a cultura cede, por sua vez, o lugar. Mas, a quê e a quem? Qual é o domínio onde se realizaram valores supremos susceptíveis de unir a Europa? As conquistas técnicas? O mercado? A política com o ideal de democracia, com o princípio da tolerância? Mas, essa tolerância, que já não protege nenhuma criação rica nem nenhum pensamento forte, não se tornará oca e inútil? Ou então, será que podemos entender a demissão da cultura como uma espécie de libertação à qual nos devemos abandonar com euforia? Não sei. A única coisa que julgo saber é que a cultura já cedeu o seu lugar. Assim, a imagem da identidade europeia afasta-se do passado. Europeu: aquele que tem a nostalgia da Europa.

Milan Kundera, in "A Arte do Romance"

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16/03/10

NOCTURNOS - 81





Serenata

Homenagem a Lope de Vega

Pelas ribeiras do rio
está a noite a molhar-se
e nos peitos de Lolita
só de amor morrem os ramos.

Só de amor morrem os ramos.

A noite canta despida
sobre as pontes que tem Março.
Lolita lava o seu corpo
com água salgada e nardos.

Só de amor morrem os ramos.

A noite de anis e prata
rebrilha pelos telhados,
Prata de arroios e espelhos.
Anis de tuas coxas brancas.

Só de amor morrem os ramos.


Federico García Lorca

Recolhido em http://insensatezz.no.sapo.pt/palavras/noite00.htm

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15/03/10

ESCREVER -79


[sempre quis atingir a palavra]

[...] Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também.

Sim, mas é a sorte às vezes. Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranquilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras.

Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial.[...]


Clarice Lispector

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14/03/10

OS MEUS POETAS - 173



Uma arte

A arte de perder não é difícil de se dominar;
tantas coisas parecem cheias da intenção
de se perderem que a sua perda não é uma

[calamidade.

Perder qualquer coisa todos os dias. Aceitar

[a agitação
de chaves perdidas, a hora mal passada.
A arte de perder não é difícil de se dominar

Então procura perder mais, perder mais depressa:
lugares e nomes e para onde se tencionava
viajar. Nenhuma destas coisas trará uma calamidade.

Perdi o relógio da minha mãe. E olha! a última, ou
a penúltima, de três casas amadas desapareceu.
A arte de perder não é difícil de se dominar.

Perdi duas cidades encantadoras: E, mais vastos

[ainda,
reinos que possuía, dois rios, um continente.
Sinto a falta deles, mas não foi uma calamidade.

- Mesmo o perder-te (a voz trocista, um gesto
que amo) não foi diferente disso. É evidente
que a arte de perder não é muito diflcil de se dominar
mesmo que nos pareça (toma nota!) uma calamidade.

Elisabeth Bishop

Tradução de Maria de Lourdes Guimarães
Campo das Letras 1999

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13/03/10

LEITURAS - 134



dois homens brincavam como se fossem crianças . O primeiro fazia castelos na areia,o segundo fazia castelos no ar. O primeiro dizia: a areia é o material do meu jogo,e sujava-se plantando os dedos como retroescavadoras, enquanto fazia "vruum-vrrum". O segundo olhava o ar e dizia: o silêncio é o material do meu jogo, enquanto inspirava carregando-se da mesma brisa com que enchia as altas torres. Cada um era uma criança à sua maneira. Ambos foram construindo incríveis castelos com princesas e dragões lá dentro. O primeiro homem quis entrar no castelo de areia, mas não podia, por ser muito grande e pesado, e se o fizesse, ao primeiro passo que desse, acabaria por o esmagar, já que era, na verdade, um enorme gigante. O segundo homem queria entrar no castelo imaginado suspenso no ar, bem por cima das nuvens, mas como era muito pequenino - como o polegarzinho - não conseguia chegar sequer à fechadura do portão de entrada. Os dois adultos decidiram, então, brincar ainda mais, e, por isso, resolveram construir juntos um castelo, só que agora feito com uma metade de ar e outra de areia. No fim,o castelo era do tamanho preciso e correcto e, desta forma, puderam realmente brincar, ao entrarem para salvar a princesa, com espadas de fogo e unicórnios voadores, mas isso já é outra história.

Carlos Vaz in "o estrangulador de bonecos de neve"
Editora Labirinto, Fafe, 2009
encontrado em http://adispersapalavra.blogspot.com/

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12/03/10

OMNIA VINCIT AMOR - 143



À superfície

"Houve essa vez e houve muitas outras, de que Alice já não se recordava, porque o amor de quem não amamos deposita-se à superfície e evapora-se rapidamente."

Paolo Giordano, in A Solidão dos Números Primos
trad. José J.C. Serra

In modus vivendi,- http://amata.anaroque.com/

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11/03/10

PÉROLAS - 189



A terra tem túmulos a mais
Mas os teus olhos
Ressuscitam tudo

Tu e eu
Morreremos
De excesso de eternidade


Alberto de Lacerda
(da sequência Ariel e a Luz, in Oferenda II, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994)

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10/03/10

A MÃE



Alguma vez observaste como, ao fazer-te a cama,
a tua velha mãe
desdobra, estende, alisa, acaricia o lençol
para que não fique nele uma só ruga?
A respiração, o gesto, a palma da sua mão
transbordam de uma tal ternura
que do fundo do tempo continuam a apagar

[ o incêndio
de Persépolis
e presentemente acalmam já alguma tempestade
futura
no mar da China ou noutro mar desconhecido ainda.


Poema: Vladimir Holan
Fotografia: Valeriy Tretyakov


Encontrado em http://aldinaduarte.blogspot.com

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09/03/10

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 79



— Uma roseira, mesmo
incomparável, cobre tudo com a sua distracção
[vermelha.
Por detrás da noite de pendidas
rosas, a carne é triste e perfeita
como um livro.

Herberto Helder

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08/03/10

MULHER



A Luz que Vem das Pedras

A luz que vem das pedras, do íntimo da pedra,
tu a colhes, mulher, a distribuis
tão generosa e à janela do mundo.
O sal do mar percorre a tua língua;
não são de mais em ti as coisas mais.
Melhor que tudo, o voo dos insectos,
o ritmo nocturno do girar dos bichos,
a chave do momento em que começa o canto
da ave ou da cigarra —
a mão que tal comanda no mesmo gesto fere
a corda do que em ti faz acordar
os olhos densos de cada dia um só.
Quem está salvando nesta respiração
boca a boca real com o universo?


Pedro Tamen, in "Agora, Estar"

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07/03/10

LER OS CLÁSSICOS -122



Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...


Tão tirana e desigual
Sustentam sempre a vontade,
Que a quem lhes quer de verdade
Confessam que querem mal;
Se Amor para elas não val,
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...

Se alguma tem afeição
Há-de ser a quem lha nega,
Porque nenhuma se entrega
Fora desta condição;
Não lhes queiras, coração,
E senão, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...

São tais, que é melhor partido
Para obrigá-las e tê-las,
Ir sempre fugindo delas,
Que andar por elas perdido;
E pois o tens conhecido,
Coração, que mais lhe queres?
Que, em fim, todas são mulheres!


Francisco Rodriges Lobo-S.XVII

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06/03/10

DESASSOSSEGOS -104



A desventura máxima é a solidão

A desventura máxima é a solidão. É tão verdade que o reconforto supremo - a religião - consiste em encontrar uma companhia que nunca falhe - Deus. A oração é um desabafo, como com um amigo. A obra equivale à oração, porque nos põe em contacto com os que dela tirarão proveito. O problema da vida é, portanto, o seguinte: como romper a nossa solidão, como comunicar com os outros. Assim se explica a existência do matrimónio, da paternidade, das amizades. Mas que a felicidade resida nisto, balelas! Porque se deva estar melhor comunicando com os outros do que só, é estranho. É talvez apenas uma ilusão: a maior parte do tempo, estamos muitíssimo bem sós. É agradável ter, de tempos a tempos, um odre em que nos possamos despejar e, em seguida, bebermo-nos a nós próprios: dado que pedimos aos outros apenas aquilo que já temos em nós. É um mistério o motivo por que não basta perscrutar e beber em nós próprios e seja preciso reavermo-nos por intermédio dos outros. (O sexo é um incidente: o que recebemos é momentâneo e casual; pretendemos algo de mais secreto e misterioso de que o sexo é apenas um sinal, um símbolo).
Cesare Pavese, in 'O Ofício de Viver'

a única solidão é a que não tem passado.
Agustina Bessa Luís

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05/03/10

«UMA ATITUDE SE IMPÕE: AFRONTAMENTO » - 27


Cavalo ardendo

Traga traga
Coisas concretas
Como um cavalo ardendo.

Disse Ezra
escrever
de tal forma que um homem na África
Ocidental o entenda.
E ele pôs-se a escrever os cantos,
cheios de línguas mortas,
recortes de jornais
e cenas de amor no hospício;
traga, traga
coisas concretas: luz de pássaro,
o medo de um rato,
braçadas de erva, grandes cabeças de pedra,
e ao ler o Canto 90
baixou o jornal,
Ez fê-lo (seus olhos estavam húmidos)
e disse a ela
"entre os maiores poemas de amor
jamais escritos"

Ezra, há muitas classes de traidores,
entre os quais
os políticos são de menor relevância
mas o auto-elogio,
na poesia e no amor,
tem deixado em destaque os ignorantes
mais do que os rebeldes.


Charles Bukovski
-recolhido em http://genesecondicionada.multiply.com/journal/item/232

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04/03/10

O PRAZER DE LER - 107



Os grandes livros e a educação do carácter

Isócrates, escrevendo em 380 a.C., já dizia que a educação liberal de Atenas constituía a sua glória e fornecia a melhor alternativa ao culto do poder e do dinheiro, característico dos bárbaros.

"Ter os grandes livros significa conversar com as grandes obras e os grandes autores do passado, significa compreender que a nossa civilização assenta nessa conversa. Ao entrarmos nessa conversa, o nosso olhar será inevitável e gradualmente elevado; ver-nos-emos gradualmente desprendidos de uma visão vulgar e mesquinha. Ao longo da história do Ocidente, essa conversa sempre foi entendida como condição da educação do carácter, como condição de uma educação para a liberdade - em bom rigor, como escola de liberdade."
[...]

Anthony O'Hear
cit.por João Carlos Espada no jornal i de 13 de Fevereiro de 2010 (excerto)

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03/03/10

«ENSINOU A PENSAR EM RITMO» - 4




Tormento do Ideal

Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre;
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre,

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço, em sombra, na matéria dura,
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o baptismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste.



Antero de Quental - Sonetos

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02/03/10

OS MEUS POETAS - 136



Casa da Misericórdia

O pai fuzilado.

Ou, como diz o juiz, executado.
A mãe, a miséria e a fome,
a instância que alguém lhe escreve à máquina:
Saludo al vencedor, Segundo Año Triunfal,
Solicito a Vuecencia deixar os filhos
nesta Casa da Misericórdia.
O frio do seu amanhã está numa instância.

Os orfanatos e hospícios eram duros,
mas ainda mais dura era a intempérie.
A verdadeira caridade dá medo.
É como a poesia: um bom poema,
por mais belo que seja, tem de ser cruel.
Não há mais nada.
A poesia é agora
a última casa da misericórdia.


Joan Margarit - Casa da Misericórdiaed.(bilingue:catalão-português) -trad. de Rita Custódio e Àlex Tarradellas, Ovni, 2009]

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01/03/10

CHOPIN FARIA 200 ANOS HOJE, 1 DE MARÇO


monumento em Varsóvia

Como não consigo colocar aqui um vídeo, dou a referência:
http://www.youtube.com/watch?v=hJu_VcNMAPE

Mas há bastantes mais no youtube. E Chopin merece.Também ele, com o Mozart no poema de Manuel Bandeira, está integrado e acompanha os coros angélicos .
Ou fará soar seu piano na Ilha de Vénus camoniana.

Um poema para Chopin:

Colar maravilhoso de harmonia,
De sonho, de revolta e de tristeza,
Chopin, gênio da Música irradia
Nos "Prelúdios" sem par, sua grandeza.

Relicários de luz e de poesia,
Inspiração sublime de pureza,
Onde a angústia se molda em fantasia,
Cada "Prelúdio" é um mundo de beleza.

Confidências... Presságio... Sofrimento...
Meio ano de paixão e de torturas
Entre as velhas paredes de Convento,

Neles, palpita o hausto criador,
Que impulsiona as estrelas, nas alturas,
E diviniza o Homem, pelo amor...

Escudero Pires

cit. em http://pt.wikipedia.org/wiki/Fr%C3%A9d%C3%A9ric_Chopin

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