28/02/07

RETRATOS DE UM PAÍS QUE JÁ NÃO HÁ -11

Foto de Artur Pastor(1922-1999) - ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Artur_Pastor]
Uma foto a lembrar um filme recentemente revisto (em DVD): A terra treme - de Luchino Visconti

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ESCREVER - 49




O escritor é uma figura solitária, totalmente separada do estímulo e do ponto de vista (da opinião) dos ouvintes. É obrigado a prever as reacções e a agir em conformidade com as suas previsões. Escreve com uma das mãos atada atrás das costas, estando, pois, privado do gesto. Está também privado do tom da sua voz e da ajuda de sinais que o ambiente proporciona. Está condenado ao monólogo; ninguém está ao seu lado para ajudar, para preencher os silêncios, para lhe pôr palavras na boca ou simplesmente emitir sons de encorajamento .

Harold Rosen (1981), in Hedge, Tricia, Writing, Resource Books for Teachers, OUP
trad. de M.Júlia G.Ribeiro

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27/02/07

POETAS MEUS AMIGOS - 48





Neste momento está curvada sobre
si mesma e não medita,
apenas sente o fim que sabe e não
recorda o som da música, o equilíbrio
que a sustém de pé face
à paisagem efémera dos vidros.
Nada pode ser feito.
Nada pode ser dito.
Está curvada, e sofre como um ser
estrangeiro na sua própria sala.
Ninguém, nada, somente a noite pode
entrar pela janela,
e o som dos carros longe,
e a luz cada vez mais distante das estrelas.


Nuno Dempster

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26/02/07

O PRAZER DE LER - 60



Do medo...

Há livros que me descobrem tão intimamente que evito contar aos outros que os li. Dizer ‘eu li o livro x’ é para mim mais assustador do que nomear quem se deitou comigo ontem.
................

Disseste-me que lias Simone de Beauvoir na última confissão, e que os livros nos escolhem quando sentem que estamos preparados para escutá-los. Eu sinto isso, sinto que me chamam da prateleira da estante e me vão contando segredos, histórias, vidas que eu não conheço. Mas os livros que me surpreendem são aqueles que me descobrem, aqueles que viajam bem dentro dos meus próprios segredos… aqueles livros que soletram as palavras que tenho medo de dizer a mim próprio. É um misto de êxtase e pavor quando livros assim me ardem nas mãos. Há com eles um reencontro, a sensação que uma sensibilidade parecida existiu ou existe, como que para aliviar a nossa solidão… como que para anular a nossa diferença e afugentar o medo de existirmos duma forma que nos assusta. Por outro lado cresce uma vontade de não voltar a tocá-los, de não voltar a lê-los. Tornam-se objectos incrivelmente poderosos, uma espécie de espelhos imutáveis e irreversíveis, duros e frios como o confronto inesperado com a verdade. É provável que Sartre tenha sentido o mesmo ao ler Beauvoir, é provável que o mesmo pânico lhe tenha crescido ao reler a sua própria obra. Não sei porquê, mas tenho um pressentimento de que Sartre nunca voltou a ler um dos seus livros, exactamente pelo impacto forte e severo do encontro com esse espelho – não há coisa mais cruel do que ser-se responsável por si próprio. O desajuste entre a sua obra e a sua vida parece-me argumento suficiente para justificar o meu pressentimento. Qual seria a opinião de Beauvoir sobre o assunto?

Vítor Leal de Barros

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25/02/07

«ENSINOU A SENTIR VELADAMENTE» - 6



Tenho sonhos cruéis: n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-mo coração dum véu escuro!...

Porque a dor, esta falta de harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu de agora,

Sem ela o coração é quase nada:
– Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.


Camilo Pessanha , Clepsydra

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24/02/07

LEITURAS - 36



[…]
Ele sorria. Custava-lhe falar. O sol, batendo-lhe nas costas, depois do vinho do abade, amolecia-o: e a figura dela, os seus ombros, os seus encontros davam-lhe um desejo contínuo e intenso.
- Aqui está o salto da cabra, disse Amélia parando.
Era uma abertura estreita no valado: a terra do outro lado, mais baixa, estava toda lamacenta. Via-se dali a fazenda da S. Joaneira: o campo plano estendia-se até um olival, com a erva fina muito estrelada de pequenos malmequeres brancos; uma vaca preta, de grandes malhas, pastava; e para além viam-se tetos aguçados dos casais, onde voavam revoadas de pardais.
- E agora? perguntou Amaro.
- Agora saltar, disse ela rindo.
- Cá vai! exclamou ele.
Traçou a capa, saltou: mas escorregou nas ervas húmidas, - e imediatamente Amélia, debruçando-se, rindo muito, com grandes acenos de mãos:
- E agora adeus, senhor pároco, que eu vou ter com a D. Maria. Aí fica preso na fazenda. Para cima não pode o senhor pular, pela cancela não pode o senhor passar! É o senhor pároco que está preso...
- Ó menina Amélia! ó menina Amélia!
Ela cantarolava-lhe, escarnecendo:
Fico sozinha à varanda,
Que o meu bem está na prisão!

Aquelas maneirinhas excitavam o padre - e com os braços erguidos, a voz cálida:
- Salte, salte!Ela então fez voz de mimo:
- Ai, tenho medinho! tenho medinho...
- Salte, menina!
- Lá vai! gritou ela bruscamente.
Saltou, foi cair-lhe sobre o peito com um gritinho. Amaro resvalou, firmou-se - e sentindo entre os braços o corpo dela, apertou-a brutalmente e beijou-a com furor no pescoço.
Amélia desprendeu-se, ficou diante dele, sufocada, com a face em brasa, compondo na cabeça e em roda do pescoço, com as mãos trémulas, as pregas da manta de lã. Amaro disse-lhe:
- Ameliazinha!
[....]
Eça de Queirós - O Crime do Padre Amaro

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23/02/07

CRAVOS PARA ZECA AFONSO



Venham mais cinco
Venham mais cinco
Duma assentada
Que eu pago já
Do branco ou tinto
Se o velho estica
Eu fico por cá
Se tem má pinta
Dá-lhe um apito
E põe-no a andar
De espada à cinta
Já crê que é rei
D'aquém e além-Mar
Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D'embalar a trouxa
E zarpar
A gente ajuda
Havemos de ser mais
Eu bem sei
Mas há quem queira
Deitar abaixo
O que eu levantei
A bucha é dura
Mais dura é a razão
Que a sustém
Só nesta rusga
Não há lugar
Prós filhos da mãe
Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D'embalar a trouxa
E zarpar
(continua a ser tempo, tantos anos depois, Zeca das nossas esperanças - no 20ºaniversário da tua partida «tão cedo desta vida descontente» -de embalar a trouxa, zarpar - e, sobretudo, de animar a malta - porque faz falta)

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OMNIA VINCIT AMOR - 69





Eros


Nunca o Verão se demorara
assim nos lábios
e na água
- como podíamos morrer,
tão próximos
e nus e inocentes?

Eugénio de Andrade, Mar de Setembro

[este poema vai hoje, em especial, para a nossa amiga e companheira de navegações Ana Gil, que também gosta muito deste poeta]

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22/02/07

PÉROLAS - 101




Quando arrefece o coração das pombas,
Desfalecem na sombra as suas asas.

Safo
Trad. de David Mourão - Ferreira

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21/02/07

ESCREVER - 48




O Romancista e o Escritor


Releio o curto ensaio de Sartre O Que é Escrever?. Nem uma vez ele utiliza as palavras romance, romancista. Fala apenas do escritor da prosa. Distinção justa. O escritor tem ideias originais e uma voz inimitável. Pode servir-se de qualquer forma (romance incluído) e tudo o que escreve, já que marcado pelo seu pensamento, levado pela sua voz, faz parte da sua obra. Rouseau, Goethe, Chateaubriand, Gide, Malraux, Camus, Montherland. O romancista não liga muito às suas ideias. É um descobridor que, tacteando, se esforça por desvendar um aspecto desconhecido da existência. Não está fascinado pela sua voz mas por uma forma que persegue, e só as formas que respondem às exigências do seu sonho fazem parte da sua obra. Fielding, Sterne, Flaubert, Proust, Faulkner, Céline, Calvino. O escritor inscreve-se na carta espiritual do seu tempo, da sua nação, na da história das ideias. O único contexto em que se pode apreender o valor de um romance é o da história do romance europeu. O romancista não tem contas a prestar a ninguém, excepto a Cervantes.
Milan Kundera, in 'A Arte do Romance'

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20/02/07

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 34




"[...] Divina estação das rosas, do vinho e dos amigos sinceros.
Goza este instante fugitivo que é a vida."


Omar Khayyam, Rubaiyat, (Lisboa, Moraes Editores, s/d)

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19/02/07

OMNIA VINCIT AMOR - 68



Fiquei com ela a sós, só com ela e o vinho,
e das trevas a asa ia-se então abrindo…
Somente através dela eu a vida sentia.

Que pecado haverá neste anelo de vida?
Eu, ela, o vinho branco, a noite sem limites:
éramos terra. E chuva, e ouro. E azeviche.

Ibn Hazim (994-1064)-O colar da pomba
Trad.de David Mourão-Ferreira

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18/02/07

RETRATOS DE UM PAÍS QUE JÁ NÃO HÁ - 10



foto de chusseau-flaviens-c.1920

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DESASSOSSEGOS - 51



o meu peso
nas tuas mãos a-
bertas:
a paciência in-
sombra do meu desespero.

Paul Celan –A Morte é uma Flor
- poemas do espólio -
Trad. de João Barrento

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17/02/07

OS MEUS POETAS - 68



As coisas

A bengala, as moedas, o chaveiro,
a dócil fechadura, essas tardias
notas que não lerão meus poucos dias
que restam, o baralho e o tabuleiro,
um livro e dentro dele a esmagada
violeta, monumento de uma tarde
por certo inolvidável e olvidada,
o rubro espelho ocidental em que arde
uma ilusória aurora. Quantas coisas,
limas, umbrais, atlas, copos, cravos,
nos servem como tácitos escravos,
cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além do nosso olvido
e nunca saberão que já nos fomos.

Jorge Luís Borges
tradução de Carlos Nejar e Alfredo Jacques

16/02/07

LEITURAS- 35

a nossa verdadeira história

...E uma noite estávamos a dar um concerto no topo de uma colina, eu estava a cantar e, a meio de uma canção, ouvi um som totalmente novo e pensei: “Ena! O Peter é um excelente músico, está sempre a inventar coisas novas incríveis.” Mas depois olhei para o Peter e vi que as mãos dele não coincidiam minimamente com o ritmo daquele som. Ele estava a tocar uma coisa completamente diferente. E por fim a canção estava quase a acabar, faltavam apenas algumas notas e já só restava a minha voz, para além daquela pequena e maravilhosa melodia. E então percebi que vinha de uma árvore próxima do palco, um pouco além do sítio onde eles tinham pendurado os holofotes coloridos. Era uma coruja, uma corujinha, e estávamos as duas a cantar um dueto e eu pensei: “Posso morrer neste preciso instante, porque a vida jamais será melhor do que isto.” E continuámos a cantar durante mais algum tempo e lá em baixo havia uma multidão de seres humanos – sentados no escuro – a ouvir, a ouvir. E depois começou tudo a andar para trás. E eu senti o cheiro de uma certa coisa. E nós sabemos o dia em que compreendemos que jamais contaremos a nossa verdadeira história. A nossa própria história. É nesse dia que a nossa vida começa. Boa noite, uma mesa para cinco mil pessoas, por favor.

Laurie Anderson, em Maio de 2005, no TNSJ
encontrado em http://last-tapes.blogspot.com/

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15/02/07

DE AMICITIA - 53



You've Got A Friend

When you're down and troubled
And you need some loving care
And nothing, nothing is going right
Close your eyes and think of me
And soon I will be there
To brighten up even your darkest night

You just call out my name
And you know wherever I am
I'll come running to see you again
Winter, spring, summer or fall
All you have to do is call
And I'll be there
You've got a friend

If the sky above you
Grows dark and full of clouds
And that old north wind begins to blow
Keep your head together
And call my name out loud
Soon you'll hear me knocking at your door

You just call out my name
And you know wherever I am
I'll come running to see you
Winter, spring, summer or fall
All you have to do is call
And I'll be there

Ain't it good to know that you've got a friend
When people can be so cold
They'll hurt you, and desert you
And take your soul if you let them
Oh, but don't you let them

You just call out my name
And you know wherever I am
I'll come running to see you again
Winter, spring, summer or fall
All you have to do is call
And I'll be there
You've got a friend

James Taylor
in http://simplessopros.blogspot.com/

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14/02/07

OMNIA VINCIT AMOR - 67



Mais um lenço de namorados: este foi-me enviado pelo nosso amigo Zef.

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O PRAZER DE LER - 59




Um livro que seja eu

De cada vez que penso oferecer um livro a alguém, quase invariavelmente escolho entre os que já li. Tenho até dificuldade em entender que se ofereçam livros desconhecidos, "novidades" dos escaparates, best sellers daquela semana, títulos "giros" (quantos livros se venderão pelo título?).
Passo pois, nessa perspectiva, longos minutos a estudar lombadas nas minhas estantes, num exercício de memória, reconhecimento e projecção. Revisito a minha família mais secreta, ressaboreio a incursão nas histórias esquecidas, nas personagens que reencontro como amigos perdidos. Apaixonar- -me-iam hoje como há dez, vinte anos?
O Morel de As Raízes do Céu parecer- -me-ia ainda o santo ecologista perfeito do romance que aos catorze anos aclamei "melhor livro da minha vida" como só aos catorze anos? Ainda me encantaria o Bosque da Noite, de Djuna Barnes, que devorei aos vinte anos, ainda me arrebataria até às lágrimas o no se puede vivir sin amar do Debaixo do Vulcão, de Malcolm Lowry, ainda receberia o Golpe de Misericórdia, de Marguerite Yourcenar, e a sua crudelíssima entrega de uma mulher à morte pelas mãos do homem que ama, como uma lança na alma?
O tempo passa e as minhas fixações também. Mantenho algumas fidelidades, é certo. Mas a família cresce, cresce sempre. Não posso amar com a mesma intensidade todos os Fabricios del Dongo, todos os John Grady Cole, todas as Antoinettes Cosway, todos os Judes Fawley, todos os Heathcliffs. Não tenho coração para tanto. É preciso escolher, graduar, hierarquizar. É preciso esquecer, em suma. A cada volta nas lombadas, surpreendo os olvidados com uma ponta de arrependimento, uma melancolia suave.
Os livros, como os rios onde nos banhámos, nunca mais são os mesmos, porque nós não somos os mesmos. Oferecer as nossas paixões velhas ou recentes é ressuscitá-las. Poucos presentes tão íntimos, poucas ofertas a exigir tanto talento. O de dizer "isto sou eu e acredito que podes ser tu". Ou "isto fui eu, quando tinha a tua idade". Às vezes acerta-se, outras não. Mas resulta sempre: quem ao ler o que lhe oferecemos não o amar como nós não pode ser da família.

Fernanda Câncio
In DN de 09.02.07- gentilmente autorizado pela autora
na foto:Marilyn Monroe

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13/02/07

RETRATOS DE UM PAÍS QUE JÁ NÃO HÁ - 9



viúvas na Nazaré

Neste caso, ainda se vêem, na praia...

No mar, tanta tormenta e tanto dano
Tantas vezes a morte apercebida [...]

Luís de Camões, Os Lusíadas,I,106

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DESASSOSSEGOS - 50



A minha vida é um barco abandonado

A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado ?


Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.


Morto corpo da acção sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.


Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.



Fernando Pessoa

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12/02/07

OS MEUS POETAS - 67



Às vezes entra-se em casa com o outono
preso por um fio,
dorme-se então melhor,
mesmo o silêncio acabou por se calar.

Talvez pela noite fora ouça cantar o galo,
e um rapazito suba as escadas
com um cravo
e notícias de minha mãe.

Nunca fui tão amargo, digo-lhe então,
nunca à minha sombra a luz
morreu tão jovem
e tão turva.

Parece que vai nevar.


Eugénio de Andrade

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11/02/07



Finalmente SIM !

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POEMAS COM ROSAS DENTRO - 33




Agora deixai-me partir
Pesaria tão pouco sobre as águas
Levaria tão pouca coisa
Alguns rostos o céu de Verão
Uma rosa aberta

Anne Perrier

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10/02/07

NOCTURNOS - 25




O inútil luar

É noite. A Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia . . .
Dormem as sombras na alameda
Ao longo do ermo Piabanha.
E dele um ruído vem de seda
Que se amarfanha . . .

No largo, sob os jambolanos,
Procuro a sombra embalsamada.
(Noite, consolo dos humanos!
Sombra sagrada!)

Um velho senta-se ao meu lado.
Medita. Há no seu rosto uma ânsia . . .
Talvez se lembre aqui, coitado!
De sua infância.

Ei-lo que saca de um papel . . .
Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel,
Faz umas contas . . .

Com outro moço que se cala,
Fala um de compleição raquítica.
Presto atenção ao que ele fala:
— É de política.

Adiante uma senhora magra,
Em ampla charpa que a modela,
Lembra uma estátua de Tanagra.
E, junto dela,

Outra a entretém, a conversar:
— "Mamãe não avisou se vinha.
Se ela vier, mando matar
Uma galinha."

E embalde a Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia . . .


Manuel Bandeira

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09/02/07

foto de maria gomes

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POETAS MEUS AMIGOS - 47



OFF SINA

Não quero mais
saber destino.
Eu mesmo traço
meu desatino.


Antônio Adriano de Medeiros
out - 2004



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08/02/07

LER OS CLÁSSICOS - 63



Como a floresta, faz de mim a tua lira

importa que também as minhas folhas caiam

o tumulto das tuas poderosas harmonias

virá arrancar-nos


um som profundo do Outono suave,

apesar da sua tristeza



Percy Bysshe Shelley (1792-1822)

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07/02/07

PENSAR - 58




29 de Setembro.

Tenho de deixar de orgulhar-me da minha incapacidade de sentimentos normais (o prazer de estar numa festa, a alegria da multidão, os afectos familiares, etc). Pelo contrário, sou incapaz de sentimentos excepcionais (a solidão e o autodomínio), e se não me saio bem nos sentimentos normais é porque um pretensão ingénua, em relação aos outros, me correu o sistema de reflexos, que era normalíssimo.

Cesare Pavese

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06/02/07

CAMONIANAS - 27



A fome de Camões

Este vulto, portanto, que caminha
Altas horas, ao frio das nortadas,
É Camões que se definha
Nas ruas de Lisboa abandonadas.
É Camões que a sorte vil, mesquinha,
Faz em noites de fome torturadas,
Ele o velho cantor de heróis guerreiros!...
Vagar errante como os vis rafeiros.

Morreu-lhe o escravo, o seu fiel amigo,
O seu amparo e seu bordão no mundo,
Morreu-lhe o humilde companheiro antigo,
No seu vácuo deixando um vácuo fundo.
Hoje, pois, triste, velho, sem abrigo,
Faminto, abandonado e vagabundo,
Tenta esmolar também pelas esquinas.
Ó lágrimas!...

Gomes Leal

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05/02/07

LEITURAS - 34




" A história é como o amor, é uma música, e o músico és tu, e ao tocá-la revelas um enorme talento, és um intérprete que sopra a plenos pulmões no trompete ou faz deslizar arrebatadamente o arco sobre as cordas...admirável, uma execução perfeita, palmas. Mas não conheces a partitura. Só a decifras mais tarde, muito mais tarde, mas entretanto a música evaporou-se..."

“A vida não está por ordem alfabética como há quem julgue. Surge…, ora aqui, ora ali, como muito bem entende, são migalhas, o problema depois é juntá-las, é esse montinho de areia, e este grão que grão sustém? Por vezes, aquele que está mesmo no cimo e parece sustentado por todo o montinho, é precisamente esse que mantém unidos todos os outros, porque esse montinho não obedece às leis da física, retira o grão que aparentemente não sustentava nada e esboroa-se tudo, a areia desliza, espalma-se e resta-te apenas traçar uns rabiscos com o dedo, contradanças, caminhos que não levam a lado nenhum, e continuas à nora, insistes no vaivém, que é feito daquele abençoado grão que mantinha tudo ligado… até que um dia o dedo resolve parar, farto de tanta garatuja, deixaste na areia um traçado estranho, um desenho sem jeito nem lógica, e começas a desconfiar que o sentido de tudo aquilo eram as garatujas.” (…)

“… E afinal o mundo é feito de actos, de acções… de coisas concretas que acabam por passar, porém, para a acção, escritor, verifica-se, acontece… e acontece apenas naquele preciso momento, e depois desaparece, deixa de existir, foi. E para ficar são precisas palavras que façam com que continue a ser, que testemunhem. (…) De tudo aquilo que somos, de tudo aquilo que fomos, ficam as palavras que dissemos, as palavras que tu agora escreves, escritor, e não aquilo que eu fiz em determinado momento. Ficam as palavras… as minhas… sobretudo as tuas… as palavras que testemunham. No princípio não era o verbo, mas no fim escritor. Mas quem testemunha pela testemunha? A questão é esta, ninguém testemunha pela testemunha…Feliz, infeliz, não é este o problema que me ponho, sabes, escritor, aquilo que me consola é que nesta grande adição, nessa vossa odiosa adição cheia de números, eu não apareço como uma unidade entre as demais, não me incluíram na soma, vês, queriam-me par e eu era ímpar, fiz com que errassem as contas…”

António Tabucchi - excertos de Tristano morre - ed.Dom Quixote, Lisboa, 2006

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04/02/07

OMNIA VINCIT AMOR - 66



Trois allumettes une à une allumées dans la nuit
La première pour voir ton visage
La seconde pour voir tes yeux
La dernière pour voir ta bouche
Et l'obscurité tout entière pour me rappeler tout cela
En te serrant dans mes bras.



Jacques Prévert - nascido em 4 de fevereiro de 1900



Três fósforos acesos um a um durante a noite
O primeiro para ver teu rosto
O segundo para ver teus olhos
O último para ver tua boca
E a escuridão inteirinha para lembrar tudo isso
Estreitando-te em meus braços

Tradução muito caseira de Amélia Pais

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ESCREVER - 47



Escrevo contra a força da gravidade. Que nos esmaga.
— Por que outra razão escreveria ?

Soledade Santos

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03/02/07

RETRATOS DE UM PAÍS QUE JÁ NÃO HÁ -8




duas imagens do Castelo de Leiria,
-por volta de 1920 - antes da reconstrução por Ernesto Korrodi.

[Eu gosto de ruínas porque deixam lugar à imaginação - o que deixa de acontecer quando se reconstrói - o que não quer dizer, claro, que goste de ver as coisas a cair de velhas e a não serem recuperadas.O nosso Castelo continua a ser um dos mais belos do País.Mas ainda bem que há estas imagens de há quase um século.]

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02/02/07

NOCTURNOS - 24



Lacrimae rerum

Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte!

Aqui vão teus sóis, como coorte
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
E em vão busca a certeza que o conforte?

Mas, na pompa de imenso funeral,
Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas...

É tudo, em torno a mim, dúvida e luto:
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das cousas tenebrosas...

Antero de Quental

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