05/02/07

LEITURAS - 34




" A história é como o amor, é uma música, e o músico és tu, e ao tocá-la revelas um enorme talento, és um intérprete que sopra a plenos pulmões no trompete ou faz deslizar arrebatadamente o arco sobre as cordas...admirável, uma execução perfeita, palmas. Mas não conheces a partitura. Só a decifras mais tarde, muito mais tarde, mas entretanto a música evaporou-se..."

“A vida não está por ordem alfabética como há quem julgue. Surge…, ora aqui, ora ali, como muito bem entende, são migalhas, o problema depois é juntá-las, é esse montinho de areia, e este grão que grão sustém? Por vezes, aquele que está mesmo no cimo e parece sustentado por todo o montinho, é precisamente esse que mantém unidos todos os outros, porque esse montinho não obedece às leis da física, retira o grão que aparentemente não sustentava nada e esboroa-se tudo, a areia desliza, espalma-se e resta-te apenas traçar uns rabiscos com o dedo, contradanças, caminhos que não levam a lado nenhum, e continuas à nora, insistes no vaivém, que é feito daquele abençoado grão que mantinha tudo ligado… até que um dia o dedo resolve parar, farto de tanta garatuja, deixaste na areia um traçado estranho, um desenho sem jeito nem lógica, e começas a desconfiar que o sentido de tudo aquilo eram as garatujas.” (…)

“… E afinal o mundo é feito de actos, de acções… de coisas concretas que acabam por passar, porém, para a acção, escritor, verifica-se, acontece… e acontece apenas naquele preciso momento, e depois desaparece, deixa de existir, foi. E para ficar são precisas palavras que façam com que continue a ser, que testemunhem. (…) De tudo aquilo que somos, de tudo aquilo que fomos, ficam as palavras que dissemos, as palavras que tu agora escreves, escritor, e não aquilo que eu fiz em determinado momento. Ficam as palavras… as minhas… sobretudo as tuas… as palavras que testemunham. No princípio não era o verbo, mas no fim escritor. Mas quem testemunha pela testemunha? A questão é esta, ninguém testemunha pela testemunha…Feliz, infeliz, não é este o problema que me ponho, sabes, escritor, aquilo que me consola é que nesta grande adição, nessa vossa odiosa adição cheia de números, eu não apareço como uma unidade entre as demais, não me incluíram na soma, vês, queriam-me par e eu era ímpar, fiz com que errassem as contas…”

António Tabucchi - excertos de Tristano morre - ed.Dom Quixote, Lisboa, 2006

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