31/01/07

PÉROLAS - 100




"Je comprends ici ce qu'on appelle gloire: le droit d'aimer sans mesure."

Albert Camus - Noces

Etiquetas:

30/01/07

«ENSINOU A SENTIR VELADAMENTE» - 5




















Paisagens de Inverno - II

Passou o outono já, já torna o frio...
– Outono de seu riso magoado.
Álgido inverno! Obliquo o sol, gelado...
– O sol, e as águas límpidas do rio.

Águas claras do rio! Águas do rio,
Fugindo sob o meu olhar cansado,

Para onde me levais meu vão cuidado?
Aonde me levais, meu coração vazio?

Ficai, cabelos dela, flutuando,
E, debaixo das águas fugidias,
Os seus olhos abertos e cismando...

Onde ides a correr, melancolias?
– E, refractadas, longamente ondeando,
As suas mãos translúcidas e frias...


Camilo Pessanha -Clepsydra

Etiquetas:

29/01/07

OMNIA VINCIT AMOR - 65



"Os versos são poeira fechada
de um meu tormento de amor,
mas lá fora o ar é correcto,
instável e doce e o sol
fala-te de caras promessas,
por isso quando escrevo
afundo a cabeça na poeira
e desejo o vento, o sol,
e a minha pele de mulher
contra a pele de um homem."

Alda Merini in Terra santa, 1996

Etiquetas:

28/01/07

DESASSOSSEGOS - 49

um olhar desde o esgoto
pode ser uma visão do mundo

a revolta consiste em olhar uma rosa
até pulverizar os olhos


Alejandra Pizarnik

[trad. lebre dos arrozais -http://www.theresonly1alice.blogspot.com/
foto de robert mapplethorpe]

Etiquetas:

27/01/07

RETRATOS DE UM PAÍS QUE JÁ NÃO HÁ -7



outros tempos...

Etiquetas:

LEITURAS - 33




[Chamem-me Ismael]
Chamem - me Ismael.Há alguns anos, quantos ao certo, não importa, com pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e sem nada de especial que me interessasse em terra, veio-me à ideia meter-me num navio e ver a parte aquática do mundo. É uma maneira que eu tenho de afugentar a melancolia e regularizar a circulação. Sempre que na minha boca se desenha um esgar carrancudo; sempre que me vai na alma um Novembro húmido e cinzento, sempre que dou comigo a deter-me involuntariamente em frente das agências funerárias ou a engrossar o séquito de todos os funerais com que me deparo; e, especialmente, sempre que me sinto invadido por um estado de espírito de tal maneira mórbido, que só os sólidos princípios morais me impedem de descer à rua com a ideia deliberada de arrancar metodicamente os chapéus a todos os transeuntes, nessa altura, dou-me conta que está na hora de me fazer ao mar, quanto antes. É o meu estratagema para evitar o suicídio. Catão lança-se sobre a espada com um floreado filosófico; eu, calmamente embarco. Nada há de surpreendente nisto. Embora não se dêem conta, tal como eu, quase todos os homens acalentam, mais tarde ou mais cedo, este desejo de mar.

Planura

A morte parecia ser o único fim razoável para semelhante carreira; mas a morte é apenas um salto para a região do estranho desconhecido; não passa da entrada do imenso remoto, do fantástico, do aquático, do sem alicerces. Assim, para esses homens que suspiram pela morte, mas a não desejam e não podem suicidar-se, o oceano, o participante inúmero e o acolhedor eterno, exibe com sedução os sedutores e inconcebíveis terrores da sua planura; do coração dos Pacíficos infinitos, milhares de sereias lhe cantam:«Vem para cá, coração despedaçado; aqui vivemos uma morte intermédia; aqui podemos ter, sem morrer, maravilhas sobrenaturais. Vem para cá! aniquila-te numa vida odiada pelo seu mundo terreno e que dela penso o mesmo; ofereço ainda mais esquecimento que a morte. Vem para cá! Levanta a tua própria lápide no cemitério, e vem para cá casar-te comigo!»Ouvindo estas vozes vindas do leste e do oeste, da alvorada ao crepúsculo, o espírito do ferreiro respondeu: «Pois bem; aqui me tens!» E foi assim que Perth foi pescar a baleia.
Herman Melville, Moby Dick - excertos

Etiquetas:

26/01/07

POETAS MEUS AMIGOS - 46




Não mais abismos ou miragens




eu sei
pareço-me demais com a linha do infinito
quase imaginária
pensamento sonhador
algo perdido

por vezes chego ainda a procurar adiante
como nada mais fosse encontrar senão aquela linha
distante
imensurável

um improvável cais para servir de palco após tantos ensaios

mas ali
o que se vê
tem dimensão de pátria construída
terra que começa a desenhar o seu futuro
ainda a esconder sob forte neblina
tantos medos


porém
definitivamente
não mais a conceber abismos ou miragens


de si mesma





Eliana Mora
in http://elpoeta.multiply.com

Etiquetas:

25/01/07

CAMONIANAS- 26

a propósito da lírica camoniana e dos problemas de fixação do «corpus»

não sei se o camões hoje teria escrito as suas rhythmas,
começa porque não saberia ao certo quais eram e então não havia camonistas
para discutirem a questão, e depois talvez não valesse a pena
falar àquela gente, e os auditórios têm limites de paciência.

Por exemplo, o dia em que eu nasci moura e pereça,
diz-me o aguiar e silva, não é dele quase de certeza.
E eu respondo: é tão bom que tem mesmo de ser dele,
e o vítor ri, exclamando: você já está como o faria e sousa.

A ironia desta conversa é que ela se passava
no instituto camões, calcule-se, somos ambos do conselho geral,
tratando da expansão da língua portuguesa
que se mais mundo houvera lá chegara

e estava uma tarde esplêndida de janeiro
e se o camões estivesse ali não havia de acreditar
que um de nós estivesse prestes a tirar-lhe um soneto
o mais doutamente possível e o outro lho quisesse devolver,

invocando-lhe o som, a fúria e o sentido,
nem que há séculos que as coisas se vão passando assim,
e uns gajos de nome germânico, lachmann, storck,

e mais alguns. A moral da história é que um verso de camões
com pouca variação é sempre um verso de camões,
é a coisa mais bela e mais difícil do mundo
e dá cá uma guinada tão especial que só pode ser dele.

Vasco da Graça Moura

Etiquetas:

24/01/07

DO FALAR POESIA - 59



Epitáfio

Desejas tu saber, ó caminhante,
como vive o poeta após a morte?

Aquilo que tu lês sou eu que falo;
e a tua voz é hoje a minha voz.

Pseudo-Alcuíno

trad. de David Mourão-Ferreira

Etiquetas:

22/01/07

LER OS CLÁSSICOS - 62



Horas breves do meu contentamento

Horas breves do meu contentamento,
nunca me pareceu quando vos tinha,
que vos visse tornadas tão asinha
em tão compridos dias de tormento.

Aquelas torres que fundei no vento,
o vento mas levou, que mas sustinha;
do mal que me ficou, a culpa é minha,
pois sobre cousas vás fiz fundamento.

Amor com brandas mostras aparece,
tudo possível faz, tudo assegura,
mas logo no melhor desaparece.

Ó cegueira tamanha! ó desventura!
Por um pequeno bem que desfalece
aventurar um bem que sempre dura!


Diogo Bernardes

Etiquetas:

21/01/07

OMNIA VINCIT AMOR - 64


para fiama, no seu «dobrar da curva da estrada»

Do amor

Esta vista de mar, solitariamente,

dói-me. Apenas dois sóis, duas luas

me dariam riso e bálsamo.

A arte da natureza pede

o amor em dois olhares.

Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007)

in "As Fábulas"; 2002

[:como sou pouco ou mesmo nada versada em colocação de links, este poema é uma homenagem conjunta do Zef (http://www.vozromazeira.blogspot.com/) , da Soledade http://nocturnocomgatos.weblog.com.pt/ e,naturalmente, minha]


Etiquetas:

RETRATOS DE UM PAÍS QUE JÁ NÃO HÁ - 6




















Toda a vida fui pastor
Toda a vida guardei gado
Tenho uma cova no peito,ai,ai
De me encostar ao cajado.

foto de Chusseau-Flaviens .c.1909-1919



Etiquetas:

O PRAZER DE LER - 58



Há livros que nos prendem desde as primeiras páginas, porque é como se tivessem sido escritos para nós. Não é que o mundo não tenha direito a conhecê-los; apenas, enquanto os lemos, o resto do mundo deixa de existir para nós .


António Mega Ferreira

Etiquetas:

20/01/07

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 32



















Pequeno cosmos

Ah, rosas, não, nem frutos, nem rebentos.
Horta e jardim sobejam nestes versos
De consonâncias velhas e bordões.

Navegante dum espaço que rodeio
(Noutra hora diria que infinito),
É por fome de frutos e de rosas
Que a frouxidão da pele ao osso chega.

Assim árido, e leve, me transformo :
Matéria combustível na caldeira
Que as estrelas ateiam onde passo.

Talvez, enfim, o aço apure e faça
Do espelho em que me veja e redefina.

José Saramago

Etiquetas:

19/01/07

DESASSOSSEGOS - 48




















Antes

Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.



Ricardo Reis.Fernando Pessoa

Etiquetas: ,

18/01/07

OS MEUS POETAS - 66











Quando alguém parte, tem de deitar
ao mar o chapéu com as conchas
apanhadas ao longo do Verão,
e ir-se com o cabelo ao vento,
tem de lançar ao mar
a mesa que pôs para o seu amor,
tem de deitar ao mar
o resto de vinho que ficou no copo,
tem de dar o seu pão aos peixes
e misturar no mar uma gota de sangue,
tem de espetar bem a faca nas ondas
e afundar o sapato,
coração, âncora e cruz,
e ir-se com o cabelo ao vento!
Depois, regressará, Quando?
Não perguntes.




Ingeborg Bachmann

Etiquetas:

17/01/07

INESIANAS - 16











“No teu corpo de tule e carnação,
com isso a minha mão ao teu cabelo
juntou a coroa impalpável e perfeita.
Amando te coroei, fui eu o trono
a que subiste até que a espada surda
te apeou. Inês, amor, eu é que sei que
depois de rainha foste morta."

Pedro Tamen in Analogia e Dedos, 2006

Etiquetas:

16/01/07

RETRATOS DE UM PAÍS QUE JÁ NÃO HÁ - 5



vieira de leiria- mercado

Etiquetas:

DO FALAR POESIA - 58


chagall



"Mas o que vou dizer da Poesia? O que vou dizer destas nuvens, deste céu? Olhar, olhar, olhá- las, olhá-lo, e nada mais. Compreenderás que um poeta não pode dizer nada da poesia. Isso fica para os críticos e professores. Mas nem tu, nem eu, nem poeta algum sabemos o que é a poesia."
Federico Garcia Lorca

Etiquetas:

15/01/07

DA EDUCAÇÃO 21-A




Estamos na recta final para poder subscrever a petição. Se está de acordo, não deixe para mais tarde. - http://www.ipetitions.com/petition/contratlebs/tlebs.html

Etiquetas:

«ENSINOU A SENTIR VELADAMENTE"- 4



Floriram por engano as rosas bravas

Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze – quanta flor! – do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?

Camilo Pessanha -Clepsydra

Etiquetas:

14/01/07

ANIVERSÁRIO



Graças aos amigos barqueiros, companheiros de navegação neste barco de flores, atingimos hoje o 2º ano de amizade e de trocas de poesia e de vidas.Obrigada pela boa companhia.

Etiquetas:

13/01/07

POETAS MEUS AMIGOS - 45


foto sara f.

Ramos Verdes

Saí para o quintal da nossa casa na serra
onde o sol tinha sempre um sabor diferente
e molhava agora as gotas de água secando ao vento.
Era um dia calmo de uma brisa primaveril,
como aqueles em que falamos do Universo
e do Infinito, sem medos,
e em que todos os sonhos são tangíveis.

Enrosquei-me a um canto do alpendre,
n'um banco velho que o teu pai construíra
para ir à pesca.
Olhei para o jardim que cercava a casa.
Imaginei como seria ver crianças, outrora nós,
correndo por entre os ramos verdes da infância,
gritando pequenas interjeições
de uma alegria que dura o que dura o sol
por aquelas bandas.

Sentaste-te do meu lado.

Ficámos os dois a lembrar aquelas memórias
de um futuro tão proximamente distante de nós.
Encostei a cabeça no teu ombro, como sempre fizera,
Olhei para o teu rosto, agora tão perto,
e, em tom quase infantil, desafiei-te para uma corrida.
Saltaste de um só impulso e saíste correndo,
chamando-me,
em direcção aos ramos verdes.

Sara F.-blogue http://vermelhoeoutrascores.blogspot.com/

Etiquetas:

12/01/07

PÉROLAS - 99

















Falam por mim os plátanos da rua
Deixam cair as folhas amarelas
E ficam hirtos, na friagem nua,
Como mastros sem velas.

Miguel Torga

Etiquetas:

11/01/07

LER OS CLÁSSICOS - 61





Não perguntes Leuconoe, - ímpio será sabê-lo –
que fim a nós dois os deuses destinaram,
não consultes sequer os números babilónicos:
Melhor é aceitar! E venha o que vier!
Quer Júpiter te dê ainda muitos invernos,
Quer seja o derradeiro este que ora desfaz

nos rochedos hostis ondasdo mar Tirreno,
vive com sensatez destilando o teu vinho
e como a vida é breve, encurta a longa espr’ança.
De inveja o tempo voa, enquanto nós falamos:

Colhe os frutos do dia, o dia de hoje,
Que nunca o de amanhã merece confiança.

Horácio, Odes

Etiquetas:

10/01/07

RETRATOS DE UM PAÍS QUE JÁ NÃO HÁ - 4



ericeira -outros tempos

Etiquetas:

LEITURAS - 32





Orlando

«Era homem; era mulher. Conhecia os segredos e partilhava as fraquezas de ambos. Sem dúvida que se tratava do mais confuso e incrível dos estados de espírito. A felicidade da ignorância estava-lhe vedada. Era como uma pena agitando-se na tempestade. Não é caso para admirar, pois, que ao comparar ambos os sexos, descobria estarem os dois repletos das mais deploráveis enfermidades [...].

«"Melhor ser pobre e ignorante, pois são estes os atributos do sexo feminino; melhor deixar o governo do mundo para os outros; melhor abandonar as ambições marciais, o amor ao poder e todos os outros desejos masculinos, se com isso se apreciar plenamente os mais exaltados êxtases do espírito humano, que são", e nesta altura, tal como costumava acontecer sempre que se comovia, começou a falar em voz alta -, "a contemplação, a solidão e o amor."

«"Graças a Deus que sou mulher!", gritou, estando prestes a cometer a loucura extrema - nada mais aflitivo tanto nos homens como nas mulheres - de se envaidecer do seu próprio sexo, quando a simples palavra que, e apesar de todos os nossos esforços para a esquecermos se insinuou no final da frase, a fez parar. Amor. "O amor." Nesse mesmo instante - tal é a sua impetuosidade - o amor tomou forma humana - tal é o seu orgulho. É que, enquanto os outros pensamentos se contentam em permanecer abstractos, nada mais satisfaz este do que assumir forma humana, de mantilha e saia, de calções e gibão. E, dado que todos os amores de Orlando haviam sido mulheres, agora, devido à lentidão dos seres humanos para se adaptarem às convenções, e muito embora fosse mulher, o objecto do seu amor continuava a ser uma mulher. E, se a consciência de pertencer ao mesmo sexo tinha algum efeito no caso, apenas apressava e aprofundava os sentimentos que a caracterizavam enquanto homem. Pois agora entendia toda uma série de alusões e mistérios que antes lhe escapavam. Agora, a obscuridade que divide os sexos e mantém as impurezas na sombra deixara de existir, e, se o poeta tem razão no que diz a respeito da beleza e da verdade, este amor ganhou em beleza aquilo que perdera em falsidade. Agora, gritou, conhecia Sasha tal como ela era, e, no ardor da descoberta e da ânsia de alcançar todos os tesouros que lhe eram revelados, sentiu-se tão arrebatada e encantada, que se sentiu como se lhe tivesse soado um tiro de canhão [...].»

Virginia Woolf, Orlando
tradução de Lucília Rodrigues, Publicações Europa-América

Etiquetas:

08/01/07

PÉROLAS - 98




Legenda

Nada garante que tu existas
Não acredito que tu existas
Só necessito que tu existas

David Mourão-Ferreira

Etiquetas:

DE AMICITIA - 52



"O tempo passava e a vida tornava-se cada vez mais opaca em redor de mim. Os livros acumulam-se, adensam-se. E cada livro continha uma pitada da verdade e cada recordação insinuava que é vão conhecer a verdadeira natureza das relações humanas, porque nenhum conhecimento torna uma pessoa mais sábia.(…) O amigo, assim como o namorado, não espera recompensa pelos seus sentimentos. Não quer contrapartidas, não considera a pessoa que escolheu para ser seu amigo como uma criatura irreal, conhece os seus defeitos e assim o aceita, com todas as suas consequências. Isso seria o ideal. E na verdade, vale a pena viver, ser homem, sem esse ideal? "[....]

"... Porque amamos sempre a pessoa diferente, procuramo-la em todas as situações e variantes da vida... O maior segredo e dádiva da vida, quando duas pessoas semelhantes se encontram... Isso é tão raro, como se a natureza impedisse com força e astúcia essa harmonia - talvez porque para a criação do mundo e para a renovação da vida necessita da tensão que se gera entre as pessoas que se procuram eternamente, mas que têm intenções e ritmos de vida opostos... "

Sandor Marai, As velas ardem até ao fim

Etiquetas:

07/01/07

CAMONIANAS - 25



Em louvor do senhor Luís de Camões,

que escreveu em língua hispânica da viagem de Vasco da Gama

Vasco, de quem o mastro audacioso
de encontro ao sol que nos retraz o dia
as velas desfraldou, e que volvia
de onde só há naufrágio desastroso,

não mais, por ti, de um oceano alteroso

triunfa o que ao Ciclope impôs mestria,
nem o que na caverna entrou da Harpia,
nem mais merecem verso numeroso.

E agora que do Luís agudo e culto

tão alto se alça o voo sublimado
que tua quilha não mais longe atinge,

pra quantos cobre o nosso pólo o vulto

e os que do oposto os astros hão fitado,
o Louro é del' com que te a Fama cinge.

Torquato Tasso

Tradução de Jorge de Sena

Etiquetas:

06/01/07

OS MEUS POETAS - 66




Com um só fósforo ilumino o infinito

Com um só fósforo ilumino o infinito.
E muitas vezes o infinito é algo
muito próximo, um livro, uma chávena
de chá, o teu rosto escondido
na penumbra, o retrato de alguém desconhecido
que de uma praça, acena,
um fio de tabaco, um monograma
num lenço muito branco.
O infinito o mais das vezes é
não mais do que o que toca o coração,
uma leve poeira pelo ar, um ponto fixo
que a mão ousa tocar, esta chama
que de repente amplia a escuridão
e me torna visível a quem passa
e no clarão acende o seu cigarro.


Amadeu Baptista - in revista águas furtadas 4+5-2003
encontrado em -http://aguarelast.blogspot.com/

Etiquetas:

05/01/07

DESASSOSSEGOS - 47


Foto de Gilbert Garcin

Amostra sem valor

Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida
ignoram todo o homem , dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.

António Gedeão

Etiquetas:

04/01/07

RETRATOS DE UM PAÍS QUE JÁ NÃO HÁ - 3


lavadeiras -Caneças
foto de armando santos - gentilmente cedida por carla de elsinore
-http://welcometoelsinore.blogspot.com/

Etiquetas:

OMNIA VINCIT AMOR - 63




Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite.
Estou assustada à espera que regresses. As ondas já
engoliram a praia mais pequena e entornaram algas
nos vasos da varanda. E, na cidade, conta-se que
as praças açoitaram à tarde dezenas de gaivotas
que perseguiram os pombos e os morderam.

A lareira crepita lentamente. O pão ainda está morno
à tua mesa. Mas a água já ferveu três vezes
para o caldo. E em casa a luz fraqueja, não tarda
que se apague. E tu não tardes, que eu fiz um bolo

de ervas com canela; e há compota de ameixas
e suspiros e um cobertor de lã na cama e eu

Estou assustada.A lua está apenas por metade,
a terra treme. E eu tremo, com medo, que não voltes.

Maria do Rosário Pedreira

Etiquetas:

03/01/07

LEITURAS - 31



As maçãs

Nicholson levantou os olhos para ele e deteve-o.
"O que faria você se pudesse modificar o sistema de ensino?", perguntou com um ar ambíguo. "Alguma vez pensou no assunto, por acaso? Responda só a esta pergunta", pediu Nicholson. "O ensino é a minha mania pessoal... é isso que ensino e é por isso que pergunto."
"Bem... Não tenho bem a certeza do que é que fazia", disse Teddy. "Sei é que com certeza não começava pelas coisas que normalmente se dão primeiro." Cruzou os braços e pensou um momento. "Acho que primeiro reunia as crianças todas e lhes mostrava como se medita. Tentava mostrar-lhes o que se deve fazer para perceber quem somos, não só os nomes e essas coisas..., acho eu, mas, mesmo antes disso, levava-os a esvaziar a cabeça de tudo que os pais e todas as outras pessoas lhes tivessem dito. Quer dizer, mesmo que os pais só lhes tivessem dito que um elefante é grande, eu obrigá-los-ia a tirar isso da cabeça. Um elefante só é grande quando está ao pé de outra coisa qualquer — um cão ou uma mulher, por exemplo." Teddy tornou a pensar um momento. "Nem mesmo lhes dizia que os elefantes têm tromba. Pode ser que lhes mostrasse um elefante, se tivesse um à mão, mas deixava-os aproximar-se do elefante sem saber mais sobre o elefante do que o elefante sabe sobre eles. Fazia o mesmo com a erva e as outras coisas. Nem sequer lhes dizia que a erva é verde. Cores são só nomes. Quer dizer, se você lhes diz que a erva é verde, isso faz com que comecem à espera que a Nicholson levantou os olhos para ele e deteve-o. "O que faria você se pudesse modificar o sistema de ensino?", perguntou com um ar ambíguo. "Alguma vez pensou no assunto, por acaso? Responda só a esta pergunta", pediu Nicholson. "O ensino é a minha mania pessoal... é isso que ensino e é por isso que pergunto."
"Bem... Não tenho bem a certeza do que é que fazia", disse Teddy. "Sei é que com certeza não começava pelas coisas que normalmente se dão primeiro." Cruzou os braços e pensou um momento. "Acho que primeiro reunia as crianças todas e lhes mostrava como se medita. Tentava mostrar-lhes o que se deve fazer para perceber quem somos, não só os nomes e essas coisas..., acho eu, mas, mesmo antes disso, levava-os a esvaziar a cabeça de tudo que os pais e todas as outras pessoas lhes tivessem dito. Quer dizer, mesmo que os pais só lhes tivessem dito que um elefante é grande, eu obrigá-los-ia a tirar isso da cabeça. Um elefante só é grande quando está ao pé de outra coisa qualquer — um cão ou uma mulher, por exemplo." Teddy tornou a pensar um momento. "Nem mesmo lhes dizia que os elefantes têm tromba. Pode ser que lhes mostrasse um elefante, se tivesse um à mão, mas deixava-os aproximar-se do elefante sem saber mais sobre o elefante do que o elefante sabe sobre eles. Fazia o mesmo com a erva e as outras coisas. Nem sequer lhes dizia que a erva é verde. Cores são só nomes. Quer dizer, se você lhes diz que a erva é verde, isso faz com que comecem à espera que a erva tenha um determinado aspecto—o aspecto que você quer que ela tenha — em vez dum outro qualquer que pode ser igualmente bom ou muito melhor... não sei. Obrigava-os a deitar cá para fora toda a data de maçã que os pais deles e toda a gente os tinham obrigado a engolir."
"Não corria o risco de criar uma pequena geração de ignorantes?"
"Porquê? Não seriam mais ignorantes do que um elefante ou um pássaro ou uma árvore", asseverou Teddy. "Só porque uma pessoa é duma certa maneira, em vez de se comportar de uma certa maneira, não quer dizer que seja ignorante."
"Não?"
"Não", disse Teddy. "Além disso, se eles quisessem aprender todas essas outras coisas — nomes, cores, etc. — podiam fazê-lo, se lhes apetecesse, mas mais tarde, quando fossem mais velhos. Mas gostava que começassem por aprender a maneira verdadeira de olhar para as coisas - e não apenas a maneira como os outros apreciadores de maçã as olham — isso é que me interessa." Aproximou-se mais de Nicholson e estendeu-lhe a mão. "Tenho de ir. A sério. Gostei muito..."

Salinger in Nove Contos – Teddy
tradução de Vasco Pulido Valente

encontrado em
http://silencio.weblog.com.pt/

Etiquetas:

02/01/07

NOCTURNOS - 23

Las estrellas son hijas de la noche



Olvido

Cierra los ojos y a oscuras piérdete
bajo el follaje rojo de tus párpados.

Húndete en esas espirales
del sonido que zumba y cae
y suena allá, remoto,
hacia el sitio del tímpano,
como una catarata ensordecida.

Hunde tu ser a oscuras,
anégate en tu piel,
y más, en tus entrañas ;
que te deslumbre y ciegue
el hueso, lívida centella,
y entre simas y golfos de tiniebla
abra su azul penacho el fuego fatuo.

En esa sombra líquida del sueño
moja tu desnudez;
abandona tu forma, espuma
que no se sabe quién dejó en la orilla;
piérdete en ti, infinita,
en tu infinito ser,
mar que se pierde en otro mar:
olvídate y olvídame.

En ese olvido sin edad ni fondo
labios, besos, amor, todo, renace:
las estrellas son hijas de la noche

Octavio Paz

Encontrado em aguarelas de turner - http://aguarelast.blogspot.com/

Etiquetas:

01/01/07

COMEÇA HOJE O ANO



Começa hoje o ano


Nada começa.Tudo continua.
Onde ‘stamos, que vemos só passar?
O dia muda, lento, no amplo ar;
Múrmura, em sombras, flui a água nua.

Vem de longe,
Só nosso vê-las teve começar.
Em cadeias do tempo e do lugar,
È abismo o começo e ausência.

Nenhum ano começa. É Eternidade!
Agora, sempre, a mesma eterna Idade,
Precipício de Deus sobre o momento,

Na curva do amplo céu o dia esfria,
A água corre mais múrmura e sombria
E é tudo o mesmo: e verbo o pensamento.


Fernando Pessoa, Poesia
In Poemário -
Assírio e Alvim - 2007


Etiquetas:

Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com Licença Creative Commons