30/06/05

POEMAS DE AMIGOS - 7

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De Novo as Árvores

Regresso às minhas árvores. São deuses
sucedâneos de deuses já perdidos
e os únicos que guardam a eternidade,
o solitário tempo alheio
que nem sequer nos toca, ideia apenas
ou fluido onde ninguém mergulha as mãos.
Sozinho enfim, olhando os cirros
e a paisagem urbana além dos vidros,
despida de qualquer esperança nas linhas
exactas e desertas, as árvores são
quanto resta ao olhar melancólico
que trata vagamente de elegias,
enquanto, lenta, a névoa vai subindo.


Nuno Dempster

DO FALAR POESIA - 25

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chagall

«Quanto a Cressy: ele iniciou uma conversa sobre Shakespeare na sua ponta da mesa. - Disse que as escolas secundárias se tinham tornado uma desgraça, e que uma das razões era a poesia já não ser decorada pelos estudantes. Deu o exemplo de um homem de negócios de Nova Iorque que foi raptado. Dois dos seus empregados cavaram um buraco – bem , uma sepultura. Deixaram-no lá sob o peso de um bloco de ferro. O pobre homem, claro, pensou que ia desta para melhor, que nunca mais veria a luz do dia.
- Um caso exemplar de maldade perversa – disse Adletsky. – Parece-lhe que as pessoas que cometeram um tal crime teriam alguma noção do que era ser encerrado vivo?
- Talvez não possuíssem essa capacidade. Mas o que Cressy disse foi que a poesia que o idoso homem de negócios aprendera na escola é que o tinha mantido vivo. »
[....]

Saul Bellow, in A Autêntica – Teorema, Lisboa, 2000

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29/06/05

OMNIA VINCIT AMOR -19

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Amar não é olharmos um para o outro,

é olharmos juntos na mesma direcção .


A.de Saint-Exupéry - Terra dos Homens
foto de A.Pais.

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OS MEUS POETAS - 29

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Havia
na minha rua
uma árvore triste.



Quebrou-a o vento.


Ficou tombada,
dias e dias,
sem um lamento.

(Assim fiquei quando partiste...)



Saul Dias

28/06/05

LER OS CLÁSSICOS - 8

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Michelangelo, David

«[....] Concedo-vos que esse índio bárbaro seja uma pedra; vede o que faz em uma pedra a arte.

Arranca o estatuário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem: primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até à mais miúda. Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos. Aqui desprega, ali arruga, acolá recama. E fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar.

O mesmo será cá, se a vossa indústria não faltar à graça divina. É uma pedra, como dizeis, esse índio rude? Pois trabalhai e continuai com ele (que nada se faz sem trabalho e perseverança), aplicai o cinzel um dia e outro dia, daí uma martelada e outra martelada, e vós vereis como dessa pedra tosca e informe fazeis, não só um homem, senão um cristão, e pode ser que um santo.»

Padre António Vieira, (s.XVII) , pregando em defesa dos índios brasileiros - in Sermão do Espírito Santo - excerto

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27/06/05

DESASSOSSEGOS - 1

Sono una creatura



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Sou uma criatura

Como esta pedra
de San Michele
tão fria
tão dura
tão abandonada
tão resistente
tão totalmente
desanimada



Como esta pedra
é o meu pranto
que não se vê


A morte
paga-se
vivendo

Trad.de Amélia Pais

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26/06/05

O PRAZER DE LER - 20

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Leio só livros usados.
Encosto-os ao cestinha do pão, mudo a pá­gina com um dedo e ela fica quieta. Assim mastigo e leio.
Os livros novos são impertinentes, as folhas não ficam quietas quando as passamos, resistem e temos de carregar para que fiquem em baixo. Os livros usados têm as costas frouxas, as páginas vão-se lendo sem vol­tarem a erguer-se.
Por isso na tasca ao meio-dia sento-me na cadeira do costume, peço uma sopa e vinho e leio.
São romances de mar, aventuras na montanha, nada de histórias de cidade, que já as tenho à minha volta.
Levanto os olhos para um pouco de sol que se reflecte no vidro da porta de entrada de onde entram os dois, ela com ar de vento pelas costas, ele com ar de Cinzas.
Volto ao livro de mar: há uma pequena borrasca, de força oito, o jovem come com apetite enquanto os outros vomitam. Depois sai para o convés, aguentando-se rijo porque é jovem, só, alegre com a bor­asca.
Tiro os olhos do livro para esmagar alho cru na sopa. Absorvo um pequeno gole de tinto áspero, lenhoso.
Volto páginas dóceis, garfadas lentas, depois afasto cabeça do branco do papel e da toalha e sigo a linha os azulejos da parede que dá a volta à sala e passa por trás de duas pupilas negras de mulher, postas naquela linha como dois "mi" cortados pela linha de baixo do pentagrama. Estão fixos em mim.
Ergo à mesma altura o copo e deixo-o suspenso antes de o beber. O alinhamento leva-me a um princípio de sorriso nas faces. A geometria das coisas em redor leva a que aconteçam coincidências, encontros.
A mulher sorri frontal.[.......]


Erri Del Luca, Três cavalosed.Ambar, Porto, 2004

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25/06/05

POEMAS DE AMIGOS -6

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ABRIL

Choveu há pouco.
A terra molhada envia-me
bilhetes aéreos
que se abrem,
tal qual caleidoscópio olfativo,
contando-me de ervas, arbustos e flores.

O ar lavado descerra portas e janelas
para aquele Abril, lá longe,
que chega feito líquido verde
em envelope de vidro,
design tão moderno
de frasco bojudo.

Tal qual me ensinaste,
passo –o ,
gota a gota,
parcimoniosamente,
nos lóbulos das orelhas,
dobras de cotovelos, pulsos
e joelhos.

E aspiro, suavemente,
enxergando-te através do
espelho triplo da velha penteadeira
de madeira escura
de teu quarto.

Paradoxo de cheiro que
ao ser lavado pela chuva,
intensifica-se,
molhando-me por inteiro.

Olha, mãe: meu peito pinga.


Eneida Leite

24/06/05

ESCREVER -11

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PARA SE ESCREVER , é preciso não se ter nada para fazer, não ter um romance, ou uma peça ou um ensaio, ou um discurso para escrever. Escrevo porque não tenho de escrever. Não sou obrigado. Não escreverei quando começar a escrever a minha peça (que espero poder, ter tempo de, escrever). Mas, neste momento, diante deste belo jardim, com esta bela cerca à volta ? como não tenho nada que escrever, escrevo... Escrevo. Escreva, continue a escrever para enriquecer a língua francesa. Eu não deveria gracejar. Mas deve gracejar-se, claro.Podemos fazer gracejos amargos, doces, desagradáveis, agradáveis, cruéis, ternos, cor-de-rosa, negros, temíveis, tranquilizadores, delicados, indelicados, perversos, honestos, sentidos, malcheirosos, calmantes, exasperantes, tristes, alegres, salgados, sem sal, apimentados, melífluos, lisonjeiros, acerbos, banais, originais, doentios, saudáveis, ociosos, pedantes, aborrecidos, inquietantes, alucinantes, realistas, irreais, risonhos, corteses, descorteses, secos, sumarentos, nobres, burgueses, populares, truculentos, simplistas, tristes, dementes, petulantes, fora de moda, modernos, insignificantes, arejados, viciados, etc... etc...Colocar por ordem. Se tiverem - e vocês têm - tempo a perder. Em vez de lerem Agatha Christie, por exemplo.


Eugène Ionesco(in A Busca Intermitente, tradução de Manuel João Gomes, Difel, 1990)

encontrado em http://ruialme.blogspot.com/

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OMNIA VINCIT AMOR - 18

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AMO como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?

Fernando Pessoa- excerto de Fausto- Tragédia subjectiva

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23/06/05

PENSAR - 20

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Sem fé, ouso pensar a vida como uma errância absurda a caminho da morte, certa. Não me coube em herança qualquer deus, nem ponto fixo sobre a terra de onde algum pudesse ver-me. Tão pouco me legaram o disfarçado fu­ror do céptico, a astúcia do racio­nalista ou a ardente candura do ateu. Não ouso por isso acusar os que só acreditam naquilo de que duvi­do, nem os que fazem o culto da própria dúvida, como se não es­tivesse, também esta, rodeada de trevas. Seria eu, também, o acusa­do, pois de uma coisa estou certo: o ser humano tem uma necessidade de consolo impossível de satisfazer.
Como posso, assim, viver a felici­dade?
Procuro o que me pode consolar como o caçador persegue a caça, ati­rando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta. Quase sempre atinjo o vazio, mas, de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. Célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo, sopro dum vento que mal sobe pela árvore.
Debruço-me.
Tenho-a! Mas tenho o quê, entre estes dedos?
Se sou solitário - uma mulher amada, um desditoso companheiro de viagem. Se sou poeta ou prisio­neiro - um arco de palavras que com assombro reteso, uma súbita suspeita de liberdade. Se sou amea­çado pela morte ou pelo mar - um animal vivo e quente, coração que pulsa sarcástico; um recife de grani­to bem sólido.
Sendo tudo isso, é sempre escas­so o que tenho!

[…..}

Stig Dagerman, A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer - Fenda ed.1995





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22/06/05

UMA QUADRA AO JEITO POPULAR

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Uma mão cheia de nada,
A outra cheia de vento;
Os olhos cheios de sol,
De sonhos o pensamento.


Antónia Ferreira
(Biló)



______________________________________

O contexto em que surgiu esta quadra, segundo a filha, Júlia :
«A minha mãe andava na ceifa. Ia beber água, mas o feitor não permitiu, porque ela já tinha ido ao cântaro beber uma hora antes. (Só podiam ir beber passadas 2 ou 3 horas, não sei bem). Aí, ela refilou : "O tempo e a auga dá-os Deus de graça". ( Era assim naquela altura). O feitor proibiu-a mais uma vez. E a resposta foi : "Estais todas a ver? Nem um gole d'auga. Não temos nada de nosso, raparigas".E então saiu-lhe aquele " verso" . ( Chamavam verso a uma quadra ) . E pronto ».

LER OS CLÁSSICOS -7

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Cantiga, partindo-se


Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém
.

Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d'esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

João Roiz de Castelo-Branco (séc.XV)

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21/06/05

DO FALAR POESIA - 24

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20/06/05

O PRAZER DE LER -19

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As palavras dos livros podem ser tão escuras como a noite.
Mas acendem o mundo na direcção do nosso olhar.

Manuel Hermínio Monteiro, editor
cit .por António Cardoso Pinto

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17/06/05

DE AMICITIA - 15

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Os amigos

Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura
Um dia acordamos tristes da sua tristeza

pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis


Mas a impressão maior é a da alegria

de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor


José Tolentino Mendonça - in "De Igual Para Igual"


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OS MEUS POETAS -28

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LIBERDADE


(falta uma citação de Séneca)


Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...


Fernando Pessoa, Poesias.

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16/06/05

OMNIA VINCIT AMOR -17

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nothing matters but the quality
of the affection
- in the end - that has carved the trace in the mind
dove sta memoria

[encontrado em http://errancia.blogspot.com/}

Nada importa excepto a qualidade
do afecto
- afinal – o que esculpiu seu traço na alma
Dove sta memoria


Ezra Pound, Cantos

(tradução 'caseira' de Amélia Pais)

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15/06/05

POEMAS DE AMIGOS - 5

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Quase poema


Ando pela casa,
inquietude nos pés,
à volta das coisas mudas,
como se o poema me pudesse ser dito.

O quê dizer e quando?
Em que lugar esconde-se
a ordem das palavras,
que me permita estar próxima de alguma poesia?

Nada interessa às buganvílias da varanda,
ou ao menino que brinca lá fora.
O dia é calmo
como todos os domingos em que choveu.

Assisto ao filme francês,
quieta.
Como se tudo fosse assim,
pacífico.
Fumo um cigarro,
mordo a maçã .
Com a naturalidade de quem não vive o paradoxo,
discretamente.
E sinto escapar-me dos dedos
a poesia do mundo.

Como encontrar o verso que diga
a falta que me atravessa,
o impacto do silêncio?
As palavras são tantas
e são nenhuma.
O poema não é meu,
nem teu,
nem de ninguém.

Ando à procura dele
como quem procura um bálsamo.
Entardece o longo dia de verão
e não estás onde disseste que estarias.

Por um momento,
em gestos lentos,
acaricio o sonho,
os lábios no beijo mais longo que o dia.

Mas não, não sou de sonhos,
ou crenças,
não vivo de sombras.
Talvez mesmo não seja de poemas,
este encontro aleatório de palavras
com nexo obscuro.

Assim, levanto-me
e me preparo para ir comprar cigarros.

Dentro de mim
um cello murmura
certa música distante.

Silvia Chueire
(blogue http://www.eugeniainthemeadow.blogspot.com/ )

14/06/05

PENSAR - 19

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Estamos todos na sarjeta,
mas alguns de nós olham para as estrelas

Oscar Wilde

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LER OS CLÁSSICOS - 6

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[Repartição dos escravos na praia de Lagos-Portugal]

No outro dia, que eram 8 dias do mês de Agosto, muito cedo pela manhã, por razão da calma, começaram os mareantes de aparelhar seus batéis e tirar aqueles cativos para os levarem, segundo lhes fora mandado. Os quais postos juntamente naquele campo, era uma maravilhosa coisa de ver: porque entre eles havia alguns de razoada brancura, formosos e apostos; outros, menos brancos, que queriam semelhar pardos; outros tão negros como Etiópios, tão desafeiçoados assim nas caras como nos corpos que quase parecia aos homens que os esguardavam que viam as imagens do hemisfério mais baixo.
Mas qual seria o coração, por duro que ser pudesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento vendo assim aquela companha? Porque uns tinham as caras baixas e os rostos lavados com lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos céus, firmando os olhos em eles, bradando altamente como se pedissem socorro ao Pai da Natureza; outros feriam seu rosto com suas palmas, lançando-se estendidos em meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra, aos quais (posto que as palavras da linguagem aos nossos não pudesse ser entendida) bem correspondiam ao grau de sua tristeza.
Mas para seu dó ser mais acrescentado, sobrevieram aqueles que tinham cargo da partilha, e começaram de os apartar uns dos outros a fim de porem seus quinhões em igualdade. Pelo que convinha de necessidade se apartarem os filhos dos pais; e as mulheres, dos maridos; e os irmãos, uns dos outros. A amigos nem a parentes, não se guardava nenhuma lei; somente, cada um caía onde a sorte o levava.
— Ó poderosa Fortuna, que andas e desandas com tuas rodas, compassando as coisas do Mundo como te praz: põe, sequer, ante os olhos desta gente miserável algum conhecimento das coisas novíssimas, por que possam receber alguma consolação em meio de sua grande tristeza. E vós outros, que vos trabalhais de esta partilha: esguardai com piedade sobre tanta miséria, e vede como se apertam uns aos outros que mal os podeis desligar.
Quem poderia acabar aquela partição sem mui grande trabalho? Pois, logo que os tinham posto numa parte, os filhos que viam os pais na outra levantavam-se prestemente e iam-se para eles; as mães apertavam os outros filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, para lhes não serem tirados.
E assim trabalhosamente os acabaram de partir; porque, além do trabalho que tinham com os cativos, o campo era todo cheio de gente, assim do lugar como das aldeias e com arcas derredor, os quais deixavam em aquele dia folgar suas mãos em que estava a força do seu ganho, somente por ver aquela novidade. E com estas coisas que viam, uns chorando, outros falando, faziam tamanho alvoroço que punham em torvação os governadores daquela partilha .


Gomes Eanes de Zurara (s.xv), Crónica dos Feitos da Guiné, Cap. XXV

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13/06/05

PARA EUGÉNIO DE ANDRADE

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O SORRISO


Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.


Eugénio de Andrade (1923-2005)

(falecido esta noite - com ele se vai o mais luminoso e solar poeta do nosso s.XX - e um dos últimos grandes sobreviventes do século; para ele , certamente, um lugar na Ilha de Vénus, criada por Camões)


PARABÉNS, FERNANDO PESSOA

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13 DE JUNHO DE 1888: nasce em Lisboa Fernando Pessoa *



Vamos todos cantar para Fernando os Parabéns a você/nesta data querida...
E soprar as 117 velas que assinalam, em 2005, a sua imortalidade.
Porque você merece, hem ?!, você, fernando, você, alberto, você, álvaro, você, ricardo, você bernardo, um dos do desassossego, você tantos outros (72 apenas?), você que se quis ser o supra - Camões (?) e toda uma literatura, você argonauta das sensações verdadeiras, você que repetiu como os outros argonautas antigos NAVEGAR É PRECISO, VIVER NÃO É PRECISO, você que se quis poeta FING(E) /I -DOR (?), você, coração de ninguém, você que se propôs ser indisciplinador de almas [e continua a indisciplinar as nossas], você seguindo o fumo do [seu] cigarro como uma rota própria, você recordando as tias velhas do tempo em que festejavam o dia de seus anos, e os romances de sua infância, a Nau Catrineta, a Bela Infanta, nos intervalos do vozeirão épico de Jim Burns, você, de alma estática, sentada, vendo os navios que partem do cais, essa saudade de pedra, você do Magnificat, você recordando, de coração quebrado, pouco antes do seu virar a curva da estrada, do seu deixar de ser visto, a doçura de sua mãe tocando Un soir à Lima, você que disse não ser nada, nunca vir a ser nada, não poder querer vir a ser nada - e contudo ter em si todos os sonhos do mundo, repartindo connosco a sua condição de escravo cardíaco das estrelas, sonhando pátrias de sonho como o marinheiro perdido - e não se reconhecendo na verdadeira -, você que nos reúne aqui , rodeando-o e agradecendo-lhe ter existido e existir ainda!

Quero que você leia esta mensagem bem cedinho, ao acordar, com a Criança Eterna dentro de si, a que brincava com seus sonhos, lembra? - connosco afagando seu cabelo, dando-lhe o colo consolador que definitivamente o fará reentrar, ainda que por breves momentos de ilusão, na sua infância,sendo, de novo «feliz»,[mesmo que sobre ela se interrogue e diga:«E eu era feliz? Não sei. Fui-o outrora agora», como escreveu um dia], envolto na música embaladora e nos braços de sua mãe, de quem foi o menino, e da [sua] ama velha que o trouxe ao colo - também de sua Bébézinha querida, a doce Ophelinha de suas cartas de amor «ridículas» (deixe lá - o Álvaro tinha era ciúmes de Ophelia...). E deixe a Daisy bem longe, em Londres, e deixe por lá também aquele pobre rapazito que lhe deu tantas horas tão felizes em Iorque- e certamente a estranha Cecily que acreditava que você seria grande...e é que foi mesmo...

Está aqui, entre seus amigos, portugueses e brasileiros, unidos na língua que foi sua pátria, amigos seus que tantas alegrias lhe devem - e lhe querem muito bem -. agradecendo-lhe por ter existido e se ter outrado, múltiplo e plural como o universo !

Como presente, trazemos - lhe o nosso carinho e prometemos tomar um copo consigo na sua mesa da Brasileira ou no café Martinho - evocando aí a companhia de seus outros amigos queridos, os do Orpheu, e, em especial,o seu querido Mário - em conversa nunca acabada.


Amélia Pinto Pais

* Nota: este texto foi inicialmente aqui há uns 3 ou 4 anos colocado no fórum do site brasileiro Pessoa Revisitado, como contributo para uma festa virtual de aniversário do Poeta.

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11/06/05

COISAS MINHAS -18

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imagem de Mucha

espelho


és
quem te vês
nos olhos
de quem amas

esse o momento

do esplendor
e da verdade

- só teu


Amélia Pais

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OMNIA VINCIT AMOR - 16

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-chagall -

Uma história antiga

«Amo-te», dizia ele. E se chovesse, ou se o vento se levantasse na veiga, começava a correr, aflito, à procura de abrigo. E logo a chamava, dizendo «anda, corre, aqui estás protegida». Ela sorria. Como nos filmes. Porque nesse tempo acreditavam que há sempre um abrigo.Só mais tarde compreenderam que nada nos protege do amor.


José Carlos Barros

[in blogue Presa do Padre Pedro - http://presadopadrepedro.blogspot.com/ ]

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10/06/05

A Camões - no seu Dia

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[Camões, preso em Goa -em tempo, já,como agora, de «austera, apagada e vil tristeza]

CAMÕES E A TENÇA

Irás ao paço. Irás pedir que a tença
Seja paga na data combinada.
Este país te mata lentamente
País que tu nomeias e não nasce.

Em tua perdição se conjuraram
Calúnias desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
A quem ousou mais ser que a outra gente.
E aqueles que invocaste não te viram
Porque estavam curvados e dobrados
Pela paciência cuja mão de cinza
Tinha apagado os olhos no seu rosto.

Irás ao paço irás pacientemente
Pois não te pedem canto mas paciência.

Este país te mata lentamente.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Grades

09/06/05

ESCREVER - 10

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Passagem
[Fragmentos ]

Eles têm alguma ligação entre si?- perguntou-me A.M. Respondi-lhe que são fragmentos do real e do imaginário aparentemente independentes mas sei que há um sentimento comum costurando uns aos outros no tecido das raízes. Eu sou essa linha.

Lygia Fagundes Telles,Prémio Camões 2005,
Confissão de Leontina e fragmentos,Ediouro.
Encontrado em http://errancia.blogspot.com/

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DE AMICITIA -14

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"por causa da cor do trigo..." *

Dizia Teixeira de Pascoaes em carta a Raul Brandão: "A amizade verdadeira é o maior argumento a favor da existência de Deus". E talvez seja assim mesmo. É no riso dos amigos que vivemos a infância. O riso dos segredos cúmplices, das pequenas infracções que ninguém descobriu, da curiosidade partilhada em alvoroço, do sopro sereno do vento nos cabelos.
É nos olhos dos amigos que recordamos a infância. Corridos os anos, a esperança já um pouco gasta, esmorecida a alegria, é nos olhos deles que encontramos por momentos a luz das manhãs de outrora, o entendimento que nasce sem palavras, a emoção do riso solto sem a censura das conveniências ou da idade, a magia das tardes em que se adivinhava a Primavera. É nos olhos dos amigos que, por segundos, repousamos na sensação de que nos afastáramos pouco antes quando na verdade os não víamos há meses, há anos, esgaçados entre o trabalho e o desencanto, o trânsito e o cansaço, a vida adiada e a morte pressentida. É no rosto dos amigos que lemos o nosso envelhecer. As rugas, os cabelos brancos, o brilho embaciado do olhar, o ricto cada dia menos doce que nos vinca os lábios, os gestos lentos de amargura foram crescendo connosco sem que verdadeiramente déssemos por isso. É no rosto dos nossos amigos que sentimos a que ponto o tempo nos devastou, como se de repente e pela vez primeira nos olhássemos ao espelho. E é então que nos encontramos inermes, perdidos, desencantadamente lúcidos ante a vida que se esgotou sem que quase nunca saibamos porquê nem para quê. Mas também é no rosto envelhecido dos amigos que descobrimos a centelha de ternura que guardámos ainda quando os dias, de loucas aventuras sonhadas nas tardes chuvosas, se transformaram na própria chuva, miudinha e cinzenta, desinteressante e fria de renúncias. Sentimento controverso, a amizade. Porque os amigos nos enchem a vida com a sua presença, mas também nos fazem provar o gosto acre da tristeza ou da saudade quando deles nos separamos, e nos deixam um insuportável vazio quando os perdemos. [...]
[Image hosted by Photobucket.com* o título tem a ver com O Principezinho de Saint-Exupery, no momento em que, após ter feito amizade com a raposa, dela se despede - e a raposa conclui que ficou a ganhar com a amizade,apesar de chorar na separação, por causa da cor do trigo - que até aí nada significara para ela, mas que lhe fazia lembrar agora os cabelos loiros do amigo.]

Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel, in Clássica 21
Encontrado em http://sulparati.weblog.com.pt/arquivo/2004_04.html

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08/06/05

PENSAR -18

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Para o homem superior não há outros. Ele é o outro de si próprio. Se quer imitar alguém, é a si próprio que procura imitar. Se quer contradizer alguém, é a si mesmo que busca contradizer. Procura ferir-se, a si próprio, no que de mais íntimo tem... faz partidas às suas próprias opiniões, tem longas conversas cheias de desprezo e com as sensações que sente. Todo o homem que há sou Eu. Toda a sociedade está dentro de mim. Eu sou os meus melhores amigos e os meus verdadeiros inimigos. O resto - o que está lá fora - desde as planícies e os montes até às gentes - tudo isso não é senão paisagem...


Fernando Pessoa, in Reflexões Pessoais

in citador - http://citador.weblog.com.pt/

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POEMAS DE AMIGOS - 4

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imagem:Matisse


A única verdade



lembrando Bernardim Ribeiro

a única verdade é a linha que puxo na extremidade da
[agulha
ponto a ponto desenho
a paciência refaço os gestos
das minhas avós
quantas coisas se passavam na cabeça das mulheres
[em seu estrado
em seus olhos dobrados
e eu que nunca tive paciência


mas quem fui bem vedes que o não sou já
e pois que não tenho armas para ofender
faço desenhos de flores brilhantes com linhas
de seda paciente
é tudo o que posso fazer
com os olhos dobrados
na noite que não pára de crescer
Soledade Santos
(de nocturno com gatos -http://nocturnocomgatos.weblog.com.pt/)

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