14/06/05

LER OS CLÁSSICOS - 6

Image hosted by Photobucket.com

[Repartição dos escravos na praia de Lagos-Portugal]

No outro dia, que eram 8 dias do mês de Agosto, muito cedo pela manhã, por razão da calma, começaram os mareantes de aparelhar seus batéis e tirar aqueles cativos para os levarem, segundo lhes fora mandado. Os quais postos juntamente naquele campo, era uma maravilhosa coisa de ver: porque entre eles havia alguns de razoada brancura, formosos e apostos; outros, menos brancos, que queriam semelhar pardos; outros tão negros como Etiópios, tão desafeiçoados assim nas caras como nos corpos que quase parecia aos homens que os esguardavam que viam as imagens do hemisfério mais baixo.
Mas qual seria o coração, por duro que ser pudesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento vendo assim aquela companha? Porque uns tinham as caras baixas e os rostos lavados com lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos céus, firmando os olhos em eles, bradando altamente como se pedissem socorro ao Pai da Natureza; outros feriam seu rosto com suas palmas, lançando-se estendidos em meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra, aos quais (posto que as palavras da linguagem aos nossos não pudesse ser entendida) bem correspondiam ao grau de sua tristeza.
Mas para seu dó ser mais acrescentado, sobrevieram aqueles que tinham cargo da partilha, e começaram de os apartar uns dos outros a fim de porem seus quinhões em igualdade. Pelo que convinha de necessidade se apartarem os filhos dos pais; e as mulheres, dos maridos; e os irmãos, uns dos outros. A amigos nem a parentes, não se guardava nenhuma lei; somente, cada um caía onde a sorte o levava.
— Ó poderosa Fortuna, que andas e desandas com tuas rodas, compassando as coisas do Mundo como te praz: põe, sequer, ante os olhos desta gente miserável algum conhecimento das coisas novíssimas, por que possam receber alguma consolação em meio de sua grande tristeza. E vós outros, que vos trabalhais de esta partilha: esguardai com piedade sobre tanta miséria, e vede como se apertam uns aos outros que mal os podeis desligar.
Quem poderia acabar aquela partição sem mui grande trabalho? Pois, logo que os tinham posto numa parte, os filhos que viam os pais na outra levantavam-se prestemente e iam-se para eles; as mães apertavam os outros filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, para lhes não serem tirados.
E assim trabalhosamente os acabaram de partir; porque, além do trabalho que tinham com os cativos, o campo era todo cheio de gente, assim do lugar como das aldeias e com arcas derredor, os quais deixavam em aquele dia folgar suas mãos em que estava a força do seu ganho, somente por ver aquela novidade. E com estas coisas que viam, uns chorando, outros falando, faziam tamanho alvoroço que punham em torvação os governadores daquela partilha .


Gomes Eanes de Zurara (s.xv), Crónica dos Feitos da Guiné, Cap. XXV

Etiquetas:

Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com Licença Creative Commons