Da Poedagogia
A poesia pode ter uma função pedagógica. Bem sei que o conceito de pedagogia cria urticária em muito boa gente, mas eu prefiro irritar-me com as boas gentes que se deixam intimidar pelos conceitos. Os conceitos não fazem mal a ninguém, quando devidamente contextualizados. Além disso, no exercício da docência, sinto a pele muito mais irritada quando me deparo com graves défices de pedagogia. Alguns gregos antigos reconheceram essa função pedagógica da poesia. Jaeger fala-nos de Homero como o «educador do seu povo», referindo que «a não-separação entre a estética e a ética é característica do pensamento grego primitivo». Acredito nas virtudes de uma educação que compacte a ética e a estética sobre os alicerces da poesia, não tanto pelo valor referencial ou ideal da linguagem poética, mas mais pela sua capacidade de ver para além dos castradores convencionalismos sociais; pelo seu «poder ilimitado de conversão espiritual»; em suma, pela consciencialização de uma liberdade sempre inalienável de uma verdadeira compreensão dos outros e de si próprio. Platão pretendia expulsar os poetas da sua cidade ideal. Contudo, a cidade ideal de Platão nunca passou disso mesmo: duma cidade ideal. Não consta que o filósofo grego alguma vez tivesse a pretensão sequer de se expulsar a si próprio de uma qualquer cidade. Numa cidade real, os poetas desabrocham no meio da gente mais comum, são parte integrante dessa gente. Não vale a pena vê-los de outra maneira, ainda que haja quem julgue o contrário, ou seja, que os poetas são seres extraordinários. Para mim, são tão extraordinários quanto o pode ser um extraordinário calceteiro. Há poetas que escrevem a vida com matizes de corola, asas de passarinho e diáfanas águas a correr sem cessar. São gente, gente tão passível de errar, de pecar, de cometer crimes, como outra gente qualquer. Todavia, o produto do seu labor conferiu-lhes, ao longo do tempo, uma áurea especial. É nesse mesmo produto que reside a tal função pedagógica da poesia. Ou então no próprio labor poético. Julgo que isso se deve às características da linguagem poética. Citando Josef Simon, direi que «a poesia, enquanto lugar do uso linguístico originário, surge como a origem da linguagem». Sabendo que a função pedagógica da poesia não se faz sentir na decifração técnica a que alguns poemas são sujeitos em aulas fastidiosas, sabendo também que o denso caudal de conferências, colóquios, encontros, com poetas mais ou menos monocórdicos, nada tem contribuído em prol da poesia, só o acto de fazer poesia, praticar a poesia, pode, sem dúvida alguma, acrescentar algo de muito valioso ao processo educativo. Porque a poesia coloca o indivíduo na presença da sua originalidade. Tenho uma enorme fé na prática da poesia enquanto treino ideal da sensibilidade, das emoções, da liberdade. A expressividade granjeia na poesia, tal como, refira-se, noutras formas de expressão artística, um espaço privilegiado para o encontro do indivíduo consigo mesmo. E eu estou em crer que a apreensão de certos valores essenciais (como a tolerância, a liberdade, o amor, o belo, etc.) será bem mais efectiva se proceder de dentro para fora e não o contrário. Isto é, acredito que a apreensão desses valores pode sair favorecida se o indivíduo puder encontrá-los dentro da sua própria humanidade, despojando-se de preconceitos e estereótipos através da expressão, libertando-se pela expressão, fazendo-se reflectir naquilo que cria. Porque isso fará com que ele passe a acreditar nas suas próprias potencialidades humanas. Criando, dando-se, transmutando-se pela palavra, na palavra. Não sei se estarei a ser demasiado ingénuo, mas creio que muitos dos males no mundo advêm precisamente de não ser dada às pessoas a possibilidade de sentirem o prazer da criação. Ao contrário, as pessoas são, desde muito cedo, descaradamente educadas para a destruição, para a obediência, para a reverência, para a normalização, tudo em nome dessa mecânica que assenta no princípio da produção enquanto condição essencial para o consumo. Isso destrói, sobretudo, as próprias pessoas. Embora seja isso o que se pretende na tal cidade ideal, essa cidade que exige aos seus cidadãos a destruição da individualidade em proveito da comunidade. A poesia pode ajudar a transformar o monstro da socialização num saudável exercício de humor: amparando os indivíduos no processo da sua descoberta, ajudando-os a entender, por si próprios, que é a relação entre as letras, as palavras, os versos, que faz o poema. O poema é o resultado desse encadeamento, dessa música, desse ritmo conjunto. E nesse ritmo conjunto nenhuma individualidade sairá esgotada pelo todo.
Henrique Manuel Bento Fialho, in O Meu Cinzeiro Azul, Canto Escuro, pp. 54-56, 2007.
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