31/05/08
NOCTURNOS - 53
A lua das águas
Anoitece
e uma lua cheia surge
espalhando esplêndidas paisagens sobre as águas
no teu corpo
e nos teus olhos.
Dímitra Mandrá - in O momento do amor
Trad. de José Carlos Marques
col.UniVerso - edições sempre em pé, Porto,2007
Etiquetas: nocturnos
30/05/08
ESCREVER - 66
Etiquetas: escrever
CAMONIANAS - 44
Camões
Passaste fome,
Dizem alguns que de tua vida comem
Vermes parasitas que vivem de inventar as tuas
[histórias...
Talvez um dia neles a mutação se opere
Quando os bichos mudem de alimentação e
Passem a roer a tua obra
E não a tua morta vida terreal.
Ah Camões! Luís Vaz, se visses
Como os vermes pastam tua glória!
Por um que ame apenas tua obra
Quantos te inventam a vida passada
P'ra explicar versos que não sentem
Ou sentem tão à epiderme
Que precisam de outra história
Que não a das palavras que escreveste!
Também eu li demais a tua inventada vida:
Tudo quero esquecer p'ra mais lembrar
Que poesia é só a tua glória
Eterna vida é só tua Poesia
E a vida que viveste é morta história.
José Blanc de Portugal
Em Descompasso, Círculo de Poesia (Nova série), Lisboa, Moraes Editores, 1986
Etiquetas: camonianas
29/05/08
POEMAS COM ROSAS DENTRO - 53
rubra
há uma rosa rubra na noite
uma rosa de silêncios e segredos
estende-se na madrugada
ninguém sabe das pétalas irisadas
pelo orvalho.
há uma rubra rosa na noite
é tua
Sílvia Chueire
Etiquetas: poemas com rosas dentro, poetas meus amigos
28/05/08
O PRINCÍPIO DA SABEDORIA -1
Etiquetas: sabedoria
O PRAZER DE LER - 79
Há os livros que antes de lidos já estão lidos. Há os que se lêem todos e ficam logo lidos todos. E há os que nos regateiam a leitura e a que pedimos humildemente que se deixem ler todos e não deixam e vão largando uma parte de si pelas gerações e jamais se deixam ler de uma vez para sempre.
Vergílio Ferreira, Escrever
Etiquetas: o prazer de ler
27/05/08
OMNIA VINCIT AMOR - 101
Aquele que amo
Disse-me
Que precisa de mim.
Por isso
Cuido de mim
Olho meu caminho
E receio ser morta
Por uma só gota de chuva.
Bertold Brecht
Etiquetas: omnia vincit amor
26/05/08
PENSAR - 78
Medo Da Nossa Condição Humana
(Blaise Pascal,Pensamentos)
Etiquetas: desassossegos, pensar
25/05/08
POETAS MEUS AMIGOS - 80
foto de ana assunção
Nem todos os poemas se editam:
alguns não servem pra nada
além da distração do autor.
foram simples tentativas
sumirão sem ser notados
sementes que não vingaram
ovas que não germinaram.
não terão fortuna crítica
nem aplauso, e nem vaia
enfim, re nulla, não mais.
E quanto aos que se publicam:
por que haviam de ter
serventia que não fosse
a sua só existência?
Os poemas são assim
- bastam-se a si, nada mais
o que não é pouca coisa
no mundo em que, aliás
tanta inutilidade
bem polida e embalada
passa por ser necessária.
Walter Cabral de Moura
Etiquetas: do falar poesia, poetas meus amigos
24/05/08
LEITURAS- 75
Sandor Marai in As velas ardem até ao fim…
Etiquetas: de amicitia, leituras
23/05/08
«ENSINOU A SENTIR VELADAMENTE» -- 26
VÉNUS
II
Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina
– Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!
Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor-de-rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.
E a vista sonda, reconstrui, compara.
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
– Ó fúlgida visão, linda mentira!
Róseas unhinhas que a maré partira
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...
Camilo Pessanha, Clepsydra
Etiquetas: sentir veladamente
22/05/08
pérolas - 134
Cansei os braços
a pendurar estrelas no céu.
Destino dos fados lassos.
Tudo termina em cansaços
braços
e estrelas
e eu.
António Gedeão
Etiquetas: desassossegos, pérolas
21/05/08
POEMAS COM ROSAS DENTRO - 52
Não encontro o retrato
Não, não encontro o retrato.
Estavas de perfil, a luz de cinza
caía-te dos braços,
da casa próxima o fumo
subia devagar os últimos degraus
do outono, um cachorro
saltava no terreiro, não tardaria
a escurecer.
Estavas de perfil, a mão acompanhando
no regaço a rosa que te dei.
Deixa-a ficar e ser,
a mão, rosa também.
Eugénio de Andrade
Etiquetas: poemas com rosas dentro
20/05/08
LER OS CLÁSSICOS - 92
[Este é o maio]
Este é o maio,
O maio é este,
Este é o maio e floresce
Este é o maio das rosas,
Este é o maio das formosas,
Este é o maio e floresce.
Este é o maio das flores.
Este é o maio dos amores,
Este é o maio e floresce.. .
Gil Vicente
Etiquetas: ler os clássicos
19/05/08
OS MEUS POETAS - 88
a luz
Não se pode prever. Sucede sempre
quando menos o esperas. Pode acontecer que
pela rua, depressa, porque se faz tarde
para pôr uma carta no correio, ou que
te encontres em casa de noite, a ler
um livro que não consegue convencer-te; pode
acontecer também que seja verão
e te tenhas sentado na esplanada
de um café, ou seja inverno e chova
e te doam os ossos; que estejas triste
que tenhas trinta anos ou sessenta.
É imprevisível. Nunca sabes
quando nem como ocorrerá.
tua vida igual a ontem, comum e quotidiana.
«Um dia mais», dizes para ti. E de súbito
desata-se uma luz poderosíssima
dentro de ti e deixas de ser o homem que eras
há só um momento. O mundo, agora,
é para ti diferente. Dilata-se
magicamente o tempo, como naqueles dias
tão longos da infância e respiras à margem
de seu escuro fluir e seu estrago.
Pradarias do presente, por onde erras livre
de cuidados e culpas. Uma agudeza insólita
mora em teu ser: tudo está claro, tudo
ocupa o seu lugar, tudo coincide e tu,
sem luta, compreende-lo.
um instante o milagre; depois as coisas voltam
a ser como eram antes que essa luz te desse
tanta verdade, tanta misericórdia.
Mas sentes-te calmo, puro, feliz, salvo,
cheio de gratidão. E cantas, cantas.
Eloy Sánchez Rosillo
-trad. José Bento
Etiquetas: os meus poetas
18/05/08
LEITURAS - 74
"Encheu-se de presunção! é que lembrou-se de ensinar francês aos servos! Nem sei se o senhor acredita. é benéfico, diz ele, é benéfico ao servo e ao criado! é um maldito desavergonhado, mais nada! Para que precisa o servo de falar francês, é capaz de me dizer? Nós próprios para que precisamos do francês, para quê? Para as gentilezas com as meninas durante a mazurka? Talvez para galantear as mulheres alheias? é uma depravação, mais nada! Por mim, bebe-se um jarro de vodka e já se fala em todas as línguas."
Etiquetas: leituras
17/05/08
DE AMICITIA - 75
Rondel de l'adieu
Partir, c'est mourir un peu,
C'est mourir à ce qu'on aime:
On laisse un peu de soi-même
En toute heure et dans tout lieu.
C'est toujours le deuil d'un voeu,
Le dernier vers d'un poème:
Partir c'est mourir un peu.
Et l'on part, et c'est un jeu,
Et jusqu'à l'adieu suprême
C'est son âme que l'on sème
Que l'on sème à chaque adieu:
Partir, c'est mourir un peu.
Edmond Haraucourt (1856 -1941)
Etiquetas: de amicitia
16/05/08
OMNIA VINCIT AMOR - 100
Deixa-me amar-te com ternura, tanto
Que nossas solidões se unam
E cada um falando em sua margem
Possa escutar o próprio canto.
Deixa-me amar-te com loucura, ambos
Cavalgando mares impossíveis
Em frágeis barcos e insuficientes velas
Pois disso se fará a nossa voz.
Deixa-me amar-te sem receio, pois
A solidão é um campo muito vasto
Que não se deve atravessar a sós.
Lya Luft
Etiquetas: omnia vincit amor
15/05/08
ANO VIEIRINO - 7
[O Amor Vulgar]
Pinta-se o Amor sempre menino, porque ainda que passe dos sete anos, como o de Jacob, nunca chega à idade de uso de razão. Usar de razão, e amar, são duas coisas que não se juntam. A alma de um menino, que vem a ser? Uma vontade com afectos, e um entendimento sem uso. Tal é o amor vulgar. Tudo conquista o amor, quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento. Ninguém teve a vontade febricitante, que não tivesse o entendimento frenético. O amor deixará de variar, se for firme, mas não deixará de tresvariar, se é amor. Nunca o fogo abrasou a vontade, que o fumo não cegasse o entendimento. Nunca houve enfermidade no coração, que não houvesse fraqueza no juízo. Por isso os mesmos Pintores do Amor lhe vendaram os olhos. E como o primeiro efeito, ou a última disposição do amor, é cegar o entendimento, daqui vem, que isto que vulgarmente se chama amor, tem mais partes de ignorância: e quantas partes tem de ignorância, tantas lhe faltam de amor. Quem ama, porque conhece, é amante; quem ama, porque ignora, é néscio. Assim como a ignorância na ofensa diminui o delito, assim no amor diminui o merecimento. Quem, ignorando, ofendeu, em rigor não é delinquente; quem, ignorando, amou, em rigor não é amante.
Etiquetas: ANO VIEIRINO
14/05/08
POETAS MEUS AMIGOS -79
foto de abbas kiarostami
pouso
no espaço entre
nós transitam
estrelas e horas
frágeis que sempre
parecem
incertas
um imenso luar inscreve teu
cheiro nas memórias do
meu corpo
e a poesia busca
alcançar a mudez que as
lágrimas carregam no
espaço onde se
encontram teu sorriso e meus
olhos
Adair Carvalhais Júnior
Etiquetas: poetas meus amigos
13/05/08
ESCREVER - 65
[a palavra secreta]
Etiquetas: escrever
12/05/08
PÉROLAS - 133
... se te lembras......
dos meus pés molhados,
manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.
Hilda Hist- excerto publicado em http://planoalto.blogspot.com/
Etiquetas: pérolas
11/05/08
PENSAR - 77
La Libertad, Sancho,es uno de los más preciosos dones que a los hombres dieron los Cielos,con ella no pueden igualarse los tesoros que encierra la tierra ni el mar encubre.
Miguel de Cervantes-D.Quijote
Etiquetas: pensar
10/05/08
DO FALAR POESIA - 80
Intensive Care
A poesia, irmã, não é
Nem canção, nem reflexão.
Poesia é «cuidado intensivo»
Aplicado à criação sem sangue
E sobretudo registo
De como a vida conduz à morte.
Kharkianákis
– trad. de Manuel Resende - in revista Diversos 6
Etiquetas: do falar poesia, escrever
09/05/08
LEITURAS- 73
Ao entardecer enfrentei o aguaceiro, cujos ventos de furacão ameaçavam desconjuntar a casa. Sofri um ataque de espirros sucessivos, doía-me a cabeça e tinha febre, mas sentia-me possuído por uma força e uma determinação que nunca tive em idade nenhuma nem por causa nenhuma. Pus vasilhas no chão para receber as goteiras e apercebi-me que tinham aparecido outras novas desde o anterior. A maior havia começado a inundar o lado direito da biblioteca. Apressei-me a resgatar os autores gregos e latinos que viviam por aqueles lados, mas ao tirar os livros deparei com um jacto de alta pressão que saía de cano roto no fundo da parede. Amordacei-o com trapos até onde pude a fim de ter tempo para salvar os livros.(...)Quando passou o aguaceiro continuava com a sensação de não estar só em casa. A minha única explicação é que assim como os factos reais se esquecem, também alguns que nunca existiram podem estar nas recordações como se tivessem existido. Pois se evocava o aparecimento do aguaceiro não me via a mim mesmo só na casa mas sempre acompanhado por Delgadinha. Sentira-a tão perto naquela noite que ouvia o rumor da sua respiração no quarto de dormir, e o pulsar da sua face na almofada. Só assim entendi que tivéssemos podido fazer tanto em tão pouco tempo. Lembrava-me de estar empoleirado no escabelo da biblioteca e lembrava-me dela acordada com seu vestidinho de flores recebendo os livros para os pôr a salvo. Vi-a correr de um lado para o outro da casa lutando com a tempestade, encharcada com água pelos tornozelos.Lembrava-me como preparou no dia seguinte um pequeno almoço que nunca existiu, e pôs a mesa enquanto secava o chão e punha ordem no naufrágio da casa Nunca esqueci o seu olhar sombrio enquanto tomávamos o pequeno-almoço: Porque me conheceste tão velho? Respondi-lhe a verdade: A idade não é a que temos mas a que sentimos.Desde então tive-a na minha memória com tal nitidez que fazia dela o que queria. Mudava-lhe a cor dos olhos conforme o meu estado de espírito: cor de água ao despertar, cor de calda de açúcar quando ria, cor de fogo quando a contrariava. Vestia-a de acordo com a idade e a condição que convinham às minhas mudanças de humor: noviça apaixonada aos vinte anos, puta de salão aos quarenta, rainha da Babilónia aos setenta, santa aos cem. Cantávamos duetos de amor de Puccinni, boleros de Agustín Lara, tangos de Carlos Gardel, e verificávamos uma vez mais que os que não cantam não podem sequer imaginar o que é a felicidade de cantar. Hoje sei que não foi uma alucinação mas mais um milagre do primeiro amor da minha vida aos noventa anos.
Etiquetas: leituras
08/05/08
OMNIA VINCIT AMOR - 99
Bilhete
Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...
Mário Quintana
Etiquetas: omnia vincit amor
07/05/08
DE AMICITIA -74
Os amigos vêm uma vez ou outra e sentam-se,
mostram - te como são dóceis ou difíceis, ou
como a morte se impede, por eles, de chegar
até ti. São uma barreira contra a morte,
os amigos, acaricias vagamente o seu rosto
ou a sua memória, as palavras não servem
para isso. Por eles vem a geometria do mundo,
neles se perde depois, nem que seja para sempre.
Vê como eles chegam e trazem vinho, tabaco,
Vergonha, cartas antigas, recortes de jornais,
Músicas que ouvimos antes. Depois sentam-se
Chamam-te para o meio deles, emprestam - te
Uma palavra ou outra, caminham com vagar,
Riem, trazem coisas que esqueces por toda a casa.
Francisco José Viegas, in O Puro e o Impuro
Etiquetas: de amicitia
06/05/08
NOCTURNOS - 52
Quero ser o poeta da noite
Noite, velada Noite,
faz-me teu poeta!
Deixa-me entoar as canções
de todos aqueles
que, pelos séculos dos séculos,
se sentaram em silêncio
à tua sombra!
Deixa-me subir ao teu carro sem rodas
que corre silencioso de mundo a mundo,
tu que és rainha do palácio do tempo,
escura e formosa!
Quantos entendimentos ansiosos
penetraram mudos no teu pátio,
vaguearam sem lâmpada pela tua casa,
à tua procura!
Quantos corações, que a mão do Desconhecido
atravessou com a flecha da alegria,
romperam em cânticos
que sacudiam a tua sombra
até aos alicerces!
Faz-me, ó Noite,
o poeta destas almas despertas
que contemplam maravilhadas,
à luz das estrelas,
o tesouro que encontraram
de repente;
o poeta do teu insondável silêncio,
ó Noite!
Rabindranath Tagore
In: "O Coração da Primavera"
Editorial A.O. - Braga
textos escolhidos e traduzidos por Manuel Simões.
Etiquetas: nocturnos
05/05/08
DESASSOSSEGOS - 72
«Ognuno sta solo sul cuor della terra
Trafitto da un raggio di sole:
Ed è subito sera.»
Salvatore Quasimodo
Todos estão sós no coração da terra,
Atravessados por um raio de sol:
E de repente é noite
(trad. de Jorge de Sena – in Poesia do s.XX-Inova,Porto,1978)
Etiquetas: desassossegos
04/05/08
NO DIA DA MÃE - 2008
Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa,
Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé
[ de ti.
Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Era a hora em que já sobre o feno das eiras
Dormia quieto e manso o impávido lebréu.
Vinham-nos da montanha as canções
[das ceifeiras,
E a Lua branca além, por entre as oliveiras,
Como a alma dum justo, ia em triunfo
[ao Céu!...
E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,
Vendo a Lua subir, muda, alumiando o espaço,
Eu balbuciava a minha infantil oração,
Pedindo ao Deus que está no azul
[do firmamento
Que mandasse um alívio a cada sofrimento,
Que mandasse uma estrela a cada escuridão.
Por todos eu orava e por todos pedia.
Pelos mortos no horror da terra negra e fria,
Por todas as paixões e por todas as mágoas...
Pelos míseros que entre os uivos das procelas
Vão em noite sem Lua e num barco sem velas
Errantes através do turbilhão das águas.
O meu coração puro, imaculado e santo
Ia ao trono de Deus pedir, como inda vai,
Para toda a nudez um pano do seu manto,
Para toda a miséria o orvalho do seu pranto
E para todo o crime o seu perdão de Pai!...
Guerra Junqueiro - s.XIX
............
Etiquetas: efemérides
03/05/08
ACORDO ORTOGRÁFICO
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02/05/08
CAMONIANAS - 43
Canção Sétima
Manda-me Amor que cante docemente
o que ele já em minh' alma tem impresso
com pressuposto de desabafar-me;
e por que com meu mal seja contente,
diz que ser de tão lindos olhos preso,
contá-lo bastaria a contentar-me.
Este excelente modo de enganar-me
tomara eu só de Amor por interesse,
se não se arrependesse,
coa pena o engenho escurecendo.
Porém a mais me atrevo,
em virtude do gesto de que escrevo;
e se é mais o que canto que o que entendo,
invoco o lindo aspeito,
que pode mais que Amor em meu defeito.
Sem conhecer Amor viver soía,
seu arco e seus enganos desprezando,
quando vivendo deles me mantinha.
O Amor enganoso, que fingia
mil vontades alheias enganando,
me fazia zombar de quem o tinha.
No Touro entrava Febo, e Progne vinha;
o corno de Aqueloo Flora entornava,
quando o Amor soltava
os fios de ouro, as tranças encrespadas
ao doce vento esquivas,
dos olhos rutilando chamas vivas,
e as rosas antre a neve semeadas,
co riso tão galante
que um peito desfizera de diamante.
Um não sei que suave, respirando,
causava um admirado e novo espanto,
que as cousas insensíveis o sentiam.
E as gárrulas aves levantando
vozes desordenadas em seu canto,
como em meu desejo se encendiam.
As fontes cristalinas não corriam,
inflamadas na linda vista pura;
florescia a verdura
que, andando, cos divinos pés tocava;
os ramos se abaixavam,
tendo enveja das ervas que pisavam
- ou porque tudo ante ela se abaixava -.
Não houve cousa, enfim,
que não pasmasse dela, e eu de mim.
Porque quando vi dar entendimento
às cousas que o não tinham, o temor
me fez cuidar que efeito em mim faria.
Conheci-me não ter conhecimento;
e nisto só o tive, porque Amor
mo deixou, por que visse o que podia.
Tanta vingança Amor de mim queria
que mudava a humana natureza:
os montes e a dureza
deles, em mim, por troca, traspassava.
Oh, que gentil partido:
trocar o ser do monte sem sentido
pelo que num juízo humano estava!
Olhai que doce engano:
tirar comum proveito de meu dano!
Assi que, indo perdendo o sentimento
a parte racional, me entristecia
vê-la a um apetite sometida;
mas dentro n' alma o fim do pensamento
por tão sublime causa me dezia
que era razão ser a razão vencida.
Assi que, quando a via ser perdida,
a mesma perdição a restaurava;
e em mansa paz estava
cada um com seu contrário num sujeito.
Oh, grão concerto este!
Quem será que não julgue por celeste
a causa donde vem tamanho efeito,
que faz num coração
que venha o apetite a ser razão?
Aqui senti de Amor a mor fineza,
como foi ver sentir o insensível,
e o ver a mim de mim mesmo perder-me.
Enfim, senti negar-se a natureza;
por onde cri que tudo era possível
aos lindos olhos seus, senão querer-me.
Despois que já senti desfalecer-me,
em lugar do sentido que perdia,
não sei que me escrevia
dentro n' alma, coas letras da memória,
o mais deste processo
co claro gesto juntamente impresso
que foi a causa de tão longa história.
Se bem a declarei,
eu não a escrevo, da alma a trasladei.
Canção, se quem te ler
não crer dos olhos lindos o que dizes,
pelo que em si escondem,
os sentidos humanos lhe respondem:
bem podem dos divinos ser juízes.
Luís de Camões -Rimas (1ªed.1595)
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01/05/08
LABUTA, MEU BEM LABUTA/QUE É NO MÊS DE MAIO QUE COMEÇA A LUTA
Poema de Maio
Maio maduro Maio
Quem te pintou
Quem te quebrou o encanto
Nunca te amou
Raiava o Sol já no Sul
E uma falua vinha
Lá de Istambul
Sempre depois da sesta
Chamando as flores
Era o dia da festa
Maio de amores
Era o dia de cantar
E uma falua andava
Ao longe a varar
Maio com meu amigo
Quem dera já
Sempre depois do trigo
Se cantará
Qu'importa a fúria do mar
Que a voz não te esmoreça
Vamos lutar
Numa rua comprida
El-rei pastor
Vende o soro da vida
Que mata a dor
Venham ver, Maio nasceu
Que a voz não te esmoreça
A turba rompeu
José (Zeca)Afonso
por indicação da ana roque (modus vivendi):
Versão dos Madredeus no YouTube
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