Esta é a verdadeira história de Zé Petinga, o homem que não parava de escrever. Filho do mar e da terra, fora pescador nas horas vagas e amante de baronesas a tempo inteiro. Conheciam-se-lhe para cima de mil relações afectivas, todas elas tão turbulentas como uma maré em noite de lua cheia. Certo dia partiu na direcção do horizonte e nunca mais alguém o viu. Regressou ninguém sabe de onde, nem com que histórias sobre os ombros. Andava aos ésses, a cada passo para a frente era homem para dar dois atrás. Só se sabia que estava diferente, com as palmas das mãos calejadas pela vida e os pés feridos de um gelo impassível. Conta-me o Galego que a última vez que o ouviu falar foi numa tarde de ventania, à marginal, cada um na sua margem e em direcções opostas. De uma margem, o Galego perguntou: ó Petinga, de que lado vem o vento? E na outra margem, o Petinga olhou para a esquerda, olhou para a direita, olhou para o alto, olhou na direcção dos pés e respondeu: ó Galego, acho que vem de cima para baixo. Desde então, não mais se soube para que direcções penderam os dedos marginais do pescador. Sabe-se apenas que mordeu o isco da palavra como um peixe incauto morde a minhoca. Ficou com a garganta presa ao anzol das letras. A toda a hora o Zé Petinga escreve, escreve, escreve e redemoinha sobre o que escreve escrevendo. Tem milhares de páginas manuscritas, arrumadas em caixotes que lhe atafulham o quarto onde já nem dorme só para poder continuar a escrever. Vive sozinho com os seus caixotes de palavras, frases inteiras, poemas, contos, páginas sem nexo aparente, saídas dos dedos ao ritmo da água numa nascente. Zé Petinga não pára de escrever. E se pára, é para beber um café e fumar um cigarro, que carne não come e peixe enjoou. Vive do fumo e da cafeína, numa divisão onde cabem um sofá, um fogão e umas escadas que dão para a cama ao lado da qual, debaixo da qual, sobre a qual, se acumulam dezenas de caixotes com milhares de páginas escritas. Tem livros inteiros, obras incomensuráveis, espalhadas pelos quatro cantos do mundo. Manda caixotes na direcção de Alexandria ao cuidado de Bibliotecas que jamais alguém saberá se existem, envia para as ex-amantes, as baronesas, fragmentos que são enciclopédias inteiras de pensamentos sobre pensamentos, dentro de outros pensamentos no imo dos quais muitos mais pensamentos medram. Zé Petinga escreve sem parar, todas as suas páginas juntas davam para fazer um lençol que atravessaria o planeta com a maior das facilidades. Se tal fosse possível, é bem provável que todas as páginas escritas até hoje por Zé Petinga dariam para embrulhar o planeta como uma múmia embrulhada em linho. O que intriga toda a gente, o que estimula desconfiança, o que gera discussão é de onde lhe vem ou onde vai ele beber esse mel mágico da chamada inspiração. Pode a vida de um único homem sustentar tanta folha? Sobre o que escreve o homem que não pára de escrever? É natural que, a páginas tantas, se lhe esgotem os recursos, fique seco de ideias, perca o caudal da existência. Mas o homem que não pára de escrever escreve sem parar, como se nada mais existisse senão ele e aquele acto de escrever. Podia escrever sempre a mesma palavra ou letras desconexas ou nada que se lesse, mas não é esse o caso. Dá-se inclusive o inusitado de já terem sido avistados textos seus, páginas marcadas pela sua laboriosa caligrafia, em alfarrabistas de várias partes do mundo. Este homem não escreve apenas sobre o acto de escrever, ele escreve como quem respira e sabe todo aquele que respira que nem sempre um homem respira da mesma maneira. A cada inspiração corresponde uma expiração diversa. Talvez seja sobre este mecanismo que o homem que não pára de escrever escreve, porque ele escreve com os cigarros queimando-se entre os dedos e largando cinza sobre a tinta da esferográfica, à luz de velas confeccionadas com cera gamada nas igrejas das redondezas, ele escreve com a caneca de café ao lado das folhas, sentindo aquele momento em que o cheiro do tabaco se imiscui com o aroma do café e os vapores pulverizam o ar que se respirar e sobre o qual se escreve. Um homem pode não viver do ar, mas Zé Petinga vive literalmente de escrever.