[Repito, emocionada, a minha Crónica nº9 de «Notícias do Antigamente»,de 25.04.05 - em nome do direito à memória e à esperança]
...e depois a festa : crónicas contra o esquecimento
Esta é a madrugada que eu esperava
0 dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
[Sophia Mello Breyner Andresen]
O regime começava a cair lentamente, em processo de corrosão interna que começava também a tornar-se notório aos mais atentos - e que a tentativa militar malograda do 16 de Março vinha confirmar. Uma série de acontecimentos prenunciavam a queda - a publicação do livro de Spínola PORTUGAL E O FUTURO e os acontecimentos a nível de altas chefias militares daí decorrentes, mostravam que havia descontentamento e dúvidas a tais níveis - ora tinham sido justamente os militares que, em 28 de Maio de 1926, tinham instaurado uma ditadura que levaria ao poder Salazar e o seu regime de Estado Novo. Lembro-me de em Paris, onde passava férias da Páscoa, ter estado com portugueses exilados - neles era já geral a convicção de que em breve seria possível o tal golpe militar de que se começava a falar, nomeadamente na imprensa estrangeira. E também eles perguntavam «noticias do (meu) país», não apenas ao «vento que passa » das trovas de Manuel Alegre, mas a quem vinha de Portugal - para quando a revolução? Aguardavam ansiosamente o fim do exílio forçado e doloroso.
Em 24 de Abril, à noite, ouvindo, como de costume, o programa Limite, na Rádio, surpreendeu-me ouvir ler a 1ªquadra da canção (proibida pela censura) GRÂNDOLA VILA MORENA, seguida da canção propriamente dita. Surpreendeu-me, mas estava longe de imaginar que essa era a 'senha' do golpe. Dormi normalmente até por volta das 6 horas da manhã, altura em que fui acordada por uma colega que me dava a notícia de que havia uma revolução.
Liguei de imediato a rádio e ouvi com expectativa os comunicados dum tal MOVIMENTO DAS FORÇAS ARMADAS (M.F.A.) que dizia estar em curso uma acção de libertação do nosso povo, procurando destituir o governo que há 48 anos oprimia o país. Não sabíamos, inicialmente, de que militares se tratava: - se de militares democratas, se de 'ultras' militares de extrema-direita que contestavam Marcelo Caetano, por 'brandura'. Da janela do meu quarto, assistia-se a um desfile de viaturas militares em direcção ao sul, a Lisboa.
Creio que nunca se ouviu tanto rádio como nesse dia - estávamos presos dos comunicados, das notícias, de saber o que se seguiria.à noite, no telejornal, veríamos os primeiros rostos da revolução triunfante. E nesse dia os jornais de referência, como o saudoso República, faziam sair os seus jornais com a tarjeta:ESTE NÚMERO NÃO FOI VISADO POR NENHUMA COMISSÃO DE CENSURA.
Fui para a escola tentar dar aulas 'normais' - naturalmente tarefa impossível, e se calhar nem sequer desejada. As autoridades da escola, essas, estavam fechadas no antigo gabinete do Reitor, ouvindo rádio - a ver, também, prudentemente, no que dava...-para se pronunciarem depois. Às 3 da tarde já se sabia: - o poder autoritário, de tipo fascista, tinha sido derrubado; aguardava-se a rendição de Marcelo Caetano, refugiado com os seus ministros no Quartel do Carmo, onde era a sede da fidelíssima Guarda Nacional Republicana. Essa rendição far-se-ia mais tarde, às ordens de Salgueiro Maia, o 1ºherói conhecido do golpe [fora também aluno desta nossa Escola Secundária de Francisco Rodrigues Lobo,de Leiria].
Entretanto, e por essa hora, e com a presença já das autoridades liceais (Reitor e Vice-Reitores, de nomeação governamental), fomos todos para o Ginásio, no 1ºdos muitos Plenários que se seguiriam. Houve algumas palavras do então Reitor, que afirmou que nunca tinha vivido em democracia - e por isso, também ele iria ter muito que aprender. Falaram mais professores, mais ou menos conotados com a até ali oposição democrática - e conhecidos como tal. Lembro-me da palavra de ordem mais aplaudida:- Hoje começa uma nova vida para todos nós - uma vida de liberdade. Há tudo para fazer. Por isso, não há tempo a perder. COMECEMOS DESDE JÁ A TRABALHAR!
E é essa a minha principal memória do dia - o «dia inicial inteiro e limpo » e que depois seria o 'dia da liberdade', de descompressão, de libertação, da festa - que o foi, na verdade - e viria a despoletar idênticos movimentos, na Grécia, em Espanha, no Brasil.
Nunca vi tanta gente contente. Por uns tempos as pessoas foram diferentes: sorriam abertamente umas para as outras, não se insultavam na estrada, davam mais facilmente boleias, exigiam mais justiça, mais fraternidade, mais solidariedade - e o fim da guerra e a liberdade para os povos colonizados. Aprendiam a falar abertamente, a tomar a voz em plenários, em sindicatos, em manifestações. Acreditámos piamente que estávamos a construir um mundo melhor, mais fraterno, mais justo. Empenhámo-nos a sério - acreditámos que era possível e estava a chegar o país da utopia .
Muito errámos depois e em muitas ocasiões. Fomos enganados na nossa boa fé, outras tantas. Mas nunca professores e alunos estiveram tão unidos na sua generosidade, nunca vi juntar-se tanta gente em torno do que consideravam boas causas (mesmo que, mais tarde, viessem a considerá-las não assim tão boas...).
Nem tudo correu bem, é certo. A história far-se-á desapaixonadamente um dia. Mas foi bom poder ver a libertação dos presos políticos, foi bom ter a ilusão de que podíamos reconstruir a História,- foi bom também ver mais tarde o país seguir, após os sobressaltos de 2 anos, uma vida democrática, moderna, europeia, civilizada.
Foi bom estar nas primeiras eleições livres, em 1975, como tinha sido linda a festa do 1º primeiro de maio...em 1974. FOI BOM VER A FESTA. Uma festa de todo um povo que era bom e generoso - e se muitos pecámos durante o chamado Período Revolucionário em Curso, a verdade é que o balanço final é positivo : podemos orgulhar-nos de sermos um país e um povo que soube vencer a 'austera, apagada e vil tristeza' de que já Camões falava, de recuperar direitos de cidadania longamente usurpados, de se erguer, sem complexos, face a uma Europa que finalmente nos aceitava no seu seio, como igual em dignidade e direitos.[...] Uma Europa maior porque mais livre - mesmo se albergando ainda grandes inquietações e,posteriormente,uma guerra terrível na Bósnia e noutras regiões da ex - República da Jugoslávia...
Depois de termos mostrado à Europa como era o mapa do mundo, depois de séculos de 'vil tristeza', erguíamo-nos de novo, encerrando o ciclo do império, sempre atlânticos, recuperando a grandeza [comprometida em Alcácer - Quibir] de não aceitar como fatal a infelicidade, o 'nevoeiro' de que falava Fernando Pessoa - e de podermos voltar a sonhar uma pátria mais justa e solidária.
E foi bom, também, ver nascer os países africanos de expressão portuguesa, que hoje são povos irmãos e não já inimigos.E ver libertar-se de outras ditaduras o Brasil, a Argentina e outros povos de além - mar. Competia - nos continuar o sonho, crescer mais e melhor, e, sobretudo, reparar injustiças, democratizar e desenvolver mais - visto que a missão de descolonizar, bem ou mal, foi feita. Essa é a tarefa dos políticos, é certo, mas é também a de cada um de nós.
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E aguardemos agora, em 2008, 34 anos depois, em tempo de desencanto, que uma breve e ténue luzinha, mesmo lá bem no fundo do túnel,nos faça recuperar esses dias de encantamento e de crença no futuro .
Porque, como dizia o poeta resistente francês Paul Eluard
«La nuit n'est jamais complète.
Il y a toujours
puisque je le dis,
Puisque je l'affirme,
Au bout du chagrin, une fenêtre ouverte,
une fenêtre éclairée. »
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