31/10/05

PÉROLAS - 34



Da música

“Onde encontrarmos algo que se pareça com a música devemos deter-nos; na vida não existe nada que valha mais a pena alcançar do que o sentimento da música, o sentimento de ressonância e de uma vida com ritmo, da justificação harmónica da existência. Onde houver tudo isto, poderá haver ainda coisas por explicar; a verdade é que ainda há muito por explicar em todos nós.”

Hermann Hesse, in carta a Ludwig Renner, (publicada em Música, p-169, ed. Difel, Lisboa 2003).

Encontrado in http://antologiadoesquecimento.blogspot.com/

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OMNIA VINCIT AMOR - 33 /1



Quatro Sonetos

I

Amo-te quanto em largo, alto e profundo
Minh’alma alcança quando, transportada
Sente, alongando os olhos deste mundo,
Os fins do ser, a graça entressonhada.


Amo-te em cada dia, hora e segundo:
À luz do Sol, na noite sossegada.
E é tão pura a paixão de que me inundo
Quanto o pudor dos que não podem nada.

Amo-te com o doer das velhas pernas,
Com sorrisos, com lágrimas de prece,
E a fé da minha infância, ingénua e forte.

Amo-te nas coisas mais pequenas
Por toda a vida. E assim Deus o quisesse.
Ainda mais te amarei depois da morte.

Elizabeth Barrett Browning
Trad. de Manuel Bandeira

(a continuar )

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30/10/05

PÉROLAS - 33



diz a pomba à estátua

Diz a pomba à inquieta estátua: “Se alguém te vem dizer que certo indivíduo falou mal de ti, não procures justificações para o que te é censurado, antes tem simplesmente as palavras seguintes: ‘Esse indivíduo ignora todos os outros defeitos de que sou portador. Assim, só se dá a murmurar os defeitos meus que conhecidos lhe são...’”

Manual de Epitecto’, XXXIII, 9 (c. 50 a.C.)

in http://catedral.weblog.com.pt/

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OS MEUS POETAS - 41




Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
E aproveito o facto de teres chegado agora
Para te explicar como vejo o crescer da magnólia.
A magnólia cresce na terra que pisas - podes pensar
Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita,
Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,
Que a magnólia - e essa é a verdade - cresce sempre
apesar de nós.
Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema
Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado
A flor que se abrir é já um pouco de ti.
E a flor que te estendo, mesmo que a recuses
Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,
A colherei.

A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra
E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão.

Daniel Faria - Dos Líquidos
In Anos 90 e Agora, Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa

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29/10/05

DE AMICITIA - 30




Os amigos

no regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias

tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite

prendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume

ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência

Al Berto

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POETAS AMIGOS -21



Recebi esta prenda... e fiquei contente



Interior

para Amélia Pais


Distância verde
nos pinheiros
que anoitecem

Macio afago
do som de água
que ao longe flui

Náutila concha
que encerra o lume
de estar sem mim

Soledade Santos

In nocturno com gatos -http://nocturnocomgatos.weblog.com.pt/

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28/10/05

LER OS CLÁSSICOS - 25




Aos Leitores Amigos

Poetas não podem calar-se,
Querem às turbas mostrar-se.
Há de haver louvores, censuras!
Quem vai confessar-se em prosa?
Mas abrimo-nos sob rosa
No calmo bosque das musas.

Quanto errei, quanto vivi,
Quanto aspirei e sofri,
Só flores num ramo — aí estão;
E a velhice e a juventude,
E o erro e a virtude
Ficam bem numa canção.

Goethe

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DA EDUCAÇÃO - 4




P-Há em vários livros seus, referências que denotam uma posição crítica em relação ao funcionamento do nosso sistema de ensino, à forma como os professores operam e, em particular, à forma como mal tratam a língua.


R: O ensino está massificado e generalizado, o que, em si, é um bem. Está a reproduzir cada vez mais a leviandade, a futilidade, a falta de rigor e a ignorância que grassam no conjunto da sociedade e isso é um mal.
É muito preocupante a iliteracia, a ignorância da língua e da História. Mas isto não se resolve com a "menina de cinco olhos". Quanto ao uso e abuso do Inglês, dá a impressão que se está a instalar, entre nós, uma espécie de mentalidade de colonizado. Sem cairmos na histeria patrioteira há que procurar inverter este rumo.

P-Como vê a desvalorização curricular da Literatura na aprendizagem do Português?

R: Vou-lhe contar uma história muito engraçada que se passou com o escritor Augusto Abelaira. Ele estava preocupado porque não sabia como resolver certa dificuldade gramatical. Então foi consultar uma gramática (creio que a do Prof. Lindley Cintra) e encontrou esse caso documentado com uma citação dele próprio, Augusto Abelaira. Quem é que mexe e remexe na língua escrita e a vai transformando? Os escritores, que alguns patetas tecnocratas (atenção que o analfabetismo vem-se instalando em escalões muito altos) querem banir do ensino.

Mário de Carvalho - em entrevista publicada em http://apagina.pt/arquivo/Artigo

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27/10/05

ESCREVER - 21




A literatura é uma arte predadora. Ela aniquila o real de forma simbólica, substituindo-o por uma irrealidade à qual dá vida fictícia, com a fantasia e as palavras, um artifício armado com materiais sempre saqueados à vida.
Mas geralmente esta operação é discreta, e frequentemente inconsciente, pois quem escreve rouba e pilha - e manipula e deforma - o vivido, a experiência real, mais por instinto e intuição do que por deliberação consciente; logo, a sua arte, a sua feitiçaria, a sua prestidigitação verbal estendem uns véus impenetráveis sobre o furtado. Se tiver talento, o delito fica impune.
Mario Vargas Llosa
encontrado em http://cortenaaldeia.blogspot.com/

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PÉROLAS - 32

- eu cá sempre gostei deste menino -:)


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26/10/05

DO FALAR POESIA - 36




Eis - nos de novo a sós, ó poesia. O teu regresso significa que devo uma vez mais medir-me contra ti, contra a tua hostilidade juvenil, com a tua sede tranquila de espaço,e afrontar para tua alegria este desconhecido equilibrante de que disponho.

René Char-
In Em Trinta e três bocados
– trad. de Yvette Centeno

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DESASSOSSEGOS -16


e.munch - o grito


[...]
A medo vivo, a medo escrevo e falo;
Hei medo do que falo só comigo;
Mais inda a medo cuido, a medo calo.

Encontro a cada passo com um inimigo
De todo bom espírito: este me faz
Temer-me de mi mesmo, e do amigo.

Tais novidades este tempo traz,
Que é necessário fingir pouco siso,
Se queres vida ter, se queres paz.

[...]



António Ferreira (s.XVI) –Carta XII - a Diogo Bernardes -excerto

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25/10/05

PÉROLAS - 31






Cada minuto é apenas um momento musical, sem memória. E a saudade não vem de longe, é como uma cor outonal na paisagem e muda como um poente...Não há futuro. Tudo é paisagem para os nossos olhos calmos e líricos. Sentimos a intimidade das coisas impossíveis.


Cristovam Pavia

- encontrado in http://www.theresonly1alice.blogspot.com/

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CAMONIANAS - 3



Na morte de Dinamene

Quando de minhas mágoas a comprida
maginação os olhos me adormece,
em sonhos aquela alma me aparece
que para mim foi sonho nesta vida.

Lá nüa soïdade, onde estendida
a vista pelo campo desfalece,
corro para ela; e ela então parece
que mais de mim se alonga, compelida.

Brado: «Não me fujais, sombra benina!»
Ela (os olhos em mim cum brando pejo,
como quem diz que já não pode ser),

torna a fugir-me; e eu, gritando Dina...,
antes que diga mene, acordo e vejo
que nem um breve engano posso ter.

Luís de Camões - Rimas

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24/10/05

LER OS CLÁSSICOS - 24



Crónica de D.João I - 1ºpágina

a mundanal afeiçom



Grande licença deu a afeiçom a muitos que teverom cárrego d'ordenar estorias, moormente dos senhores em cuja mercee e terra viviam e u forom nados seus antigos avoos, seendo-lhe muito favorávees no recontamento de seus feitos; e tal favoreza como esta nace de mundanal afeiçom, a qual nom é salvo conformidade dalgüa cousa ao entendimento do homem. Assi que a terra em que os homeés per longo costume e tempo forom criados geera üa tal conformidade antre o seu entendimento e ela que, avendo de julgar algüa sua cousa, assim em louvor como per contrairo, nunca per eles é dereitamente recontada; porque, louvando-a, dizem sempre mais daquelo que é; e, se doutro modo, nom escrevem suas perdas tam minguadamente como acontecerom.[...]

Fernão Lopes - Prólogo da Crónica de D.João I
(evocado por Soledade em comentário a Pérolas - 14 - de 25.09.05)

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OMNIA VINCIT AMOR - 32


chagall

Sobre o Amor

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos,
e não tivesse o amor,
seria como o metal que soa ou como o sino que tange;

E ainda que tivesse o Dom da profecia,
e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência
e ainda que eu tivesse toda a fé,
de modo a remover montanhas,
e não tivesse amor,
nada seria.

E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres,
e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado,
e não tivesse amor,
nada disso me aproveitaria.

O amor é sofredor, é benigno;
o amor não é invejoso;
o amor não trata com leviandade,
não se ensoberbece.

Não se porta com indecência,
não busca os seus interesses,
não se irrita,
não desconfia;

Não folga com a injustiça,
mas folga com a verdade.

Tudo sofre, tudo crê,
tudo espera,
tudo suporta.

O amor nunca falha;
mas havendo profecias, serão aniquiladas;
havendo línguas, cessarão;
havendo ciência, desaparecerá.

Porque, em parte, conhecemos,
e em parte profetizamos;

Mas quando vier o que é perfeito,
então o que é em parte será aniquilado

Quando eu era menino, falava como menino,
sentia como menino,
discorria como menino,
mas, logo que cheguei a ser homem,
acabei com as coisas de menino.

Porque agora vemos por espelho em enigma,
mas então veremos face a face;
agora conheço em parte,
mas então conhecerei como também sou conhecido.

Agora, pois, permaneça a fé,
a esperança
e o amor,
mas o maior destes é o amor.


[ S. Paulo ,1ª Epístola aos Coríntios,13,1-13 ]

.........

Nota :-Não sei se se lembram: este texto foi musicado por Zbgniew Preisner para o filme de Kieslowsky Azul - da trilogia Bleu, Blanc, Rouge - o disco existe e chama-se Preisner's Music - mas é difícil de encontrar; eu mandei vir da FNAC - França. Infelizmente não sei colocar música no blogue - e de qualquer modo era texto musical «pesado».Fica a referência.E a recomendação,claro.

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23/10/05

PÉROLAS - 30





si aquí no estan mis sueños
cómo puedo dormir aquí

Miriam Reyes. "Espejo Negro", 2001.

«achado» emn http://www.duasterras.blogspot.com/

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ESCREVER - 20


vermeer

As palavras


Ao escrever sobre o que sentimos acabamos por vezes a sentir o que escrevemos porque o escrevemos. Explico-me. Às vezes, escrevem-se coisas porque vão umas com as outras, porque rimam significados ou simplesmente ficam bem. Porque as palavras procuram outras de uma certa maneira irrecusável. E depois já está. As palavras possuem esse poder de moldar o que a mão ao escrevê-las queria dizer. Escrever não é um acto de um sentido só, uma espécie de rua de sentido único entre o que temos dentro e o que aparece de fora, escrito. Este «de fora» que parece ser a escrita, se molda o que depois ao ler sentimos, é porque está ainda «de dentro». Mas às vezes o cansaço apodera-se de nós, e temos vontade de parar. Não sei se de escrever, se de sentir, possivelmente de estar sempre a pensar nisso. Parar: vontade de fechar os olhos e ver.
Dylan Thomas - A mão ao assinar este papel

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22/10/05

PÉROLAS - 29



A inocência é um estado clandestino na ditadura do mundo.


Herberto Helder

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DE AMICITIA -29






No amor podemos substituir uma pessoa por outra, mas não na amizade, porque cada amigo tem o seu lugar e não podemos substituí - lo. Se perdes um amigo, o seu vazio nunca será substituído por outro, fica para sempre. Por isso, de certo modo, convive sempre contigo. A amizade é uma paixão, e eu sinto para com ela uma grande disponibilidade.

António Lobo Antunes
in Maria Luísa Blanco, Conversaciones con António Lobo Antunes, 2001

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21/10/05

DA EDUCAÇÃO - 3




«Goethe dizia : «Quem sabe fazer, faz. Quem não sabe, ensina».
E eu acrescento: «Quem não sabe ensinar, escreve manuais de pedagogia.»

Georges Steiner in Elogio da Transmissão-O professor e o aluno


[NB.:juro que não é provocação: apenas para provocar...]

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DESASSOSSEGOS - 15




Estreito espaço para a ilusão

Antes, em voo ousado, a imaginação
Subia até aos céus, plena de alento:
Hoje basta um estreito espaço para a ilusão
Se afundar nos abismos do tempo.
Logo o cuidado se aninha bem dentro
Do peito e traz secreto sofrimento;
Balança inquieto, estorva prazer e paz,
São sempre novas as máscaras que traz:
É casa e bens, mulher, os filhos que tiverdes,
Água, fogo, punhal, veneno, eu sei lá;
E tu tremes com medo do que nunca virá,
E choras sem cessar aquilo que não perdes.


Goethe, in Fausto

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20/10/05

PENSAR - 26


Proudhon - por Courbet

Ser governado é...



Ser guardado à vista, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, parqueado, endoutrinado, predicado, controlado, calculado, apreciado, censurado, comandado, por seres que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude (...). Ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, notado, registrado, recenseado, tarifado, selado, medido, cotado, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, rotulado, admoestado, impedido, reformado, reenviado, corrigido.
É, sob o pretexto da utilidade pública e em nome do interesse geral, ser submetido à contribuição, utilizado, resgatado, explorado, monopolizado, extorquido, pressionado, mistificado, roubado; e depois, à menor resistência, à primeira palavra de queixa, reprimido, multado, vilipendiado, vexado, acossado, maltratado, espancado, desarmado, garroteado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, no máximo grau, jogado, ridicularizado, ultrajado, desonrado.
Eis o governo, eis a justiça, eis a sua moral!

Proudhon

OS MEUS POETAS - 40



Baudelaire, por Nadar

enivrez-vous!
Il faut être toujours ivre, tout est là ; c'est l'unique question. Pour ne pas sentir l'horrible fardeau du temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.
Mais de quoi? De vin, de poésie, ou de vertu à votre guise, mais enivrez-vous!
Et si quelquefois, sur les marches d'un palais, sur l'herbe verte d'un fossé, vous vous réveillez, l'ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l'étoile, à l'oiseau, à l'horloge; à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est. Et le vent, la vague, l'étoile, l'oiseau, l'horloge, vous répondront, il est l'heure de s'enivrer ; pour ne pas être les esclaves martyrisés du temps, enivrez-vous, enivrez-vous sans cesse de vin, de poésie, de vertu, à votre guise.

Charles Baudelaire, Petits Poèmes en Prose

embriagai-vos!

Nada mais conta. Para não sentir o horrível fardo do Tempo que esmaga os vossos ombros e vos faz pender para a terra, deveis embriagar-vos sem tréguas.
Mas de quê? De vinho de poesia ou de virtude, à vossa escolha. Mas embriagai-vos.
E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na erva verde de uma vala, na solidão baça do vosso quarto, acordais, já diminuída ou desaparecida a embriaguez, perguntai ao vento, à vaga , à estrela, à ave, ao relógio ,a tudo o que foge, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, a ave, o relógio, vos responderão :"são horas de vos embriagardes! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha!

[tradução da responsabilidade de Teatro das 4 Estações,Leiria]

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19/10/05

PÉROLAS - 28


arte nahua -lua e sol

distribuis el corazon por todas las cosas.
lo transportando, no lo transportas.

poeta Nahua -México - pré-colombianos

encontrado em http://www.theresonly1alice.blogspot.com/

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É preciso avisar toda a gente /dar notícia, informar, prevenir

Petição online ao Sr. Presidente da República:

Organizada por um grupo de professores em independência de sindicatos e de organismos partidários.

Se concorda com o teor da petição, seja ou não professor - pela verdade, pela dignidade e pelo respeito da profissão docente - agradecemos a sua assinatura em:

http://new.petitiononline.com/profspor/petition.html

E, se puder e desejar, reencaminhe para todos os seus contactos.Não há bom ensino com professores descontentes e mal tratados.

OMNIA VINCIT AMOR - 31



Como é vil o coração que não sabe amar,
que não pode embriagar-se de amor!
Se não amares, como poderás apreciar
a deslumbrante luz do sol e a doce claridade do luar?

Omar Khayyam

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18/10/05

PÉROLAS - 27



nunca se deve revisitar os lugares da paixão

..........................................nada resta do que ali vivemos.

al berto

cit. em
http://letempsdescerises.blogspot.com/

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O PRAZER DE LER - 30



A minha alma está ajoelhada

Estou de alma e coração com Vergílio Ferreira :" Escrever é orar sem um Deus para a oração".Quem o teria posto melhor que ele? Recordo comovida as pessoas analfabetas do largo da Corredoura que, quando eu (com 6 /7 anos) lia para elas, diziam com espanto: "A minha alma está ajoelhada".
Eram pessoas analfabetas, trabalhadores do campo, mas com um respeito pelos livros como por objectos sagrados.Hoje, penso que ouviam as palavras, as frases, as histórias que eu lhes lia como se se tratasse de algo mágico. Sei lá! Para eles, ler deveria ser como decifrar um tremendo mistério.

(Comentário da Júlia Guarda Ribeiro /Biló à entrada Escrever-19)

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17/10/05

LER OS CLÁSSICOS - 23

dante gabriel rossetti

À Cassandre


Mignonne, allons voir si la rose
Qui ce matin avait éclose
Sa robe de pourpre au soleil,
A point perdu cette vesprée
Les plis de sa robe pourprée,
Et son teint au vôtre pareil.

Las ! Voyez comme en peu d’espace,
Mignonne, elle a dessus la place,
Las, las ses beautés laissé choir !
O vraiment marâtre Nature,
Puisqu’une telle fleur ne dure
Que du matin jusques au soir!

Donc, si vous me croyez, mignonne,
Tandis que votre âge fleuronne
En sa plus verte nouveauté,
Cueillez, cueillez votre jeunesse :
Comme à cette fleur, la vieillesse
Fera ternir votre beauté.

Pierre de Ronsard - s.XVI


A Cassandra
Vamos, meu bem, a ver se a rosa
que esta manhã, ao sol, airosa,
a sua roupa abriu vermelha,
não perde em hora vespertina
pregas da veste purpurina
e a tez que à vossa se assemelha.

Ai, vede como em pouco espaço
ela deixou, ai, triste passo,
toda a beleza fenecer.
Ah, que madrasta é a Natura
pois flor assim mais já não dura
que entre manhã a anoitecer.

Pois se me credes, vós, meu bem,
enquanto a idade em flor vos tem
nessas primícias de verdura,
colhei, colhei a mocidade
que como à flor a velhice
há-de turvar a vossa formosura.


Trad. de Vasco da Graça Moura
in Alguns Amores de Ronsard – Lisboa,Bertrand, 2003




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PÉROLAS - 26




"Amo a vida. Eis a minha verdadeira fraqueza.
Amo-a tanto,que não tenho nenhuma imaginação
para o que não for vida."

Albert Camus

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16/10/05

Peço a atenção para a ...Carta Aberta aos Professores Portugueses



- que pode ser lida em -http://nocturnocomgatos.weblog.com.pt/ -
Professores , pais e população em geral deveriam lê-la. E divulgá-la na medida das suas possibilidades...já que os jornais parecem estar surdos face ao problema. Fica a sugestão. Com professores desmotivados, tristes e mal - tratados e feridos na sua dignidade, não haverá, certamente, melhoria do ensino e das gerações em que, apesar de tudo, repousam algumas das nossa esperanças neste tempo de «austera, apagada e vil tristeza»
A Carta está em discussão - em

DE AMICITIA - 28




Amigos

Os amigos chegam de um momento para o outro
deixam a bolsa de milho no umbral
Sentam-se e dizem olá
dizem amigo amiga mascando as bolachas da casa
bebem o vinho do amanhecer
escrevem uma história nas paredes
travam as janelas sacudidas pelo vento com um poema dobrado em quatro
vento louco do sul
e vão-se
Até sempre


Juan Antonio Vasco (Argentina)
Versão de HMBF. –in http://antologiadoesquecimento.blogspot.com/

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DESASSOSSEGOS - 14



Bernardo Soares/F.Pessoa
Livro do Desassossego

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15/10/05

CAMONIANAS - 2



Busque Amor novas artes, novo engenho,
Pera matar-me, e novas esquivanças;
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê;

Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei porquê.

Luís de Camões - Rimas

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DO FALAR POESIA - 35





A poesia é tão antiga quanto o homem, acho que até mais, porque é ritmo, é a cadência das próprias estrelas...

Sandra Baldessin

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14/10/05

POETAS AMIGOS - 20


lalique


cristal
prenda de Natal para a Amélia

se no copo de cristal deitar
a mais pura água
poderá parecer que o copo permanece
vazio
por saber fica
se é mais transparente o copo ou a água
se nos teus olhos um cristal que ora brilha
ora deixa ver o mais fundo de ti
ou se água de muitas lágrimas luminosas

Cláudia Caetano -http://www.tempodual.blogspot.com/

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O PRAZER DE LER - 29

edward hopper

Ler ou não ser


[…] Uma pessoa capaz de ler o mundo como uma história terrível e no entanto maravilhosa concilia em si o desconcerto e a esperança, o medo e o amor. E é na leitura amorosa dos livros, dos grandes livros, que conseguimos desenvolver esta capacidade. Capacidade de perceber na história do mundo e na biografia pessoal uma continual allegory, como escrevia o poeta John Keats, uma ficção que diz o que está interdito, insinua uma verdade nua, que mataria numa visão directa.[…]

Ler ou não ser. Ler ou não ver. Ler ou não ter a força criativa de organizar com os olhos o volume e o peso do caos.

Gabriel Perissé - Centro Univ. S. Camilo-Brasil

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13/10/05

PÉROLAS - 25




Ainda que não alcançasse a libertação gostaria,
ao menos, de ser digno dela, a todo momento.

Franz Kafka, "Diários"

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12/10/05

OS MEUS POETAS - 39



Con los ojos cerrados, en las sombras tres rosas
veo, color de púrpura, surgidas,
una de ellas más alta,
al fondo de mi espíritu.
es un recuerdo, acaso, que perdura?
Qué mano las sacó de mi frente? se acerca
la esperanza, con pura lozania?
Quién habla en mi? Y dónde están las rosas?
Josef Sebastià Pons (1886-1962) - poeta catalão





Com os olhos cerrados , nas sombras, três rosas
vejo, cor de púrpura, surgidas,
uma delas mais alta,
no fundo da minh’ alma
acaso é uma lembrança que perdura?
Que mão as retirou da minha frente? aproxima - se
a esperança, com pura louçania?
Quem é que fala em mim? E onde estão as rosas?


Trad.«caseira» de Amélia Pais



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10/10/05

PÉROLAS - 24




"A medida de uma alma é a dimensão do seu desejo"

Gustave Flaubert

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DE AMICITIA - 27



Amizade

Damo-nos bem. Eu deixo-o ir à vontade e ele leva-me sempre onde quero.
Platero sabe que, ao chegar ao pinheiro da Coroa, gosto de me aproximar do seu tronco, acariciá-lo, e olhar o céu através da sua enorme e clara copa; sabe que me deleita o carreiro que, entre a relva, leva à velha fonte; que é para mim uma festa ver o rio da colina dos pinheiros, evocadora de uma paisagem clássica. Como é certo adormecer sobre ele, o meu despertar abre-se sempre a um destes aprazíveis espectáculos.
Trato Platero como a um menino. Se o caminho se torna pedregoso e lhe peso um pouco, desço para aliviá-lo. Beijo-o, engano-o, faço-o zangar... Ele compreende que lhe quero, e não me guarda rancor. É tão igual a mim, que cheguei a crer que sonha os meus próprios sonhos.
Platero rendeu-se-me como uma adolescente apaixonada. Não protesta por nada. Sei que sou a sua felicidade. Até foge dos burros e dos homens...

Juan Ramon Jiménez - Platero e Eu - ed.Europa-América, Lisboa
Trad. de José Bento; ilustr.de Bernardo Marques

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09/10/05

PÉROLAS - 23




E falta sempre
uma coisa, um copo
uma brisa, uma frase
E a vida dói
quanto mais se goza e
quanto mais se inventa
Fernando Pessoa, excerto de Passagem das Horas
-sobre quadro de Hopper

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ESCREVER - 19



Escreve!

Senta-te diante da folha de papel e escreve. Escrever o quê? Não perguntes. Os crentes têm as suas horas de orar, mesmo não estando inclinados para isso. Concentram-se, fazem um esforço de contensão beata e lá conseguem. Esperam a graça e às vezes ela vem. Escrever é orar sem um deus para a oração. Porque o poder da divindade não passa apenas pela crença e é aí apenas uma modalidade de a fazer existir. Ela existe para os que não crêem, como expressão do sagrado sem divindade que a preencha. Como é que outros escrevem em agnosticismo da sensibilidade? Decerto eles o fazem sendo crentes como os crentes pelo acto extremo de o manifestarem. Eles captarão assim o poder da transfiguração e do incognoscível na execução fria do acto em que isso deveria ser. Escreve e não perguntes. Escreve para te doeres disso, de não saberes. E já houve resposta bastante.

Vergílio Ferreira, in 'Pensar'

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08/10/05

PÉROLAS - 22




«Era então o amor. O amor queima as mãos, disse a minha pequena sabedoria, e as vísceras. A ciência também queima as mãos. E o medo também. Tudo queima as mãos. Precisas escolher o teu fogo.
Escolho o fogo do amor, respondi eu. E experimentei esta nova liberdade.»


Herberto Helder - (excerto do poema Exercício Corporal a cor de rosa)

OMNIA VINCIT AMOR - 30




Como um menino te canto sob a noite escura.
Cofre dos segredos, jogos profundos,
tremores do outono como lenços rápidos,

te canto ali para que sejas.
Senhora do candor,

com boca limpa digo um a um teus nomes,
ponho meu rosto na penumbra que deles desce,
faço um grande fogo com teus nomes sob a noite escura.
Na verdade quero dizer: me fazes andar contra a morte.



Juan Gelmán

trad. De Eric Nepomuceno

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07/10/05

DO FALAR POESIA - 34





[...] autorizar, para divulgar poesia, até me soa estranho. As palavras não são minhas, apenas as conjugo.

Carlos Veríssimo

[em resposta a um pedido de autorização para divulgar um poema seu-inserido em Pérolas -3]

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DESASSOSSEGOS -13



Apenas as palavras quebram o silêncio

Apenas as palavras quebram o silêncio, todos os outros sons cessaram. Se eu estivesse silencioso, não ouviria nada. Mas se eu me mantivesse silencioso, os outros sons recomeçariam, aqueles a que as palavras me tornaram surdo, ou que realmente cessaram. Mas estou silencioso, por vezes acontece, não, nunca, nem um segundo. Também choro sem interrupção. É um fluxo incessante de palavras e lágrimas. Sem pausa para reflexão. Mas falo mais baixo, cada ano um pouco mais baixo. Talvez. Também mais lentamente, cada ano um pouco mais lentamente. Talvez. É-me difícil avaliar. Se assim fosse, as pausas seriam mais longas, entre as palavras, as frases, as sílabas, as lágrimas, confundo-as, palavras e lágrimas, as minhas palavras são as minhas lágrimas, os meus olhos a minha boca. E eu deveria ouvir, em cada pequena pausa, se é o silêncio que eu digo quando digo que apenas as palavras o quebram. Mas nada disso, não é assim que acontece, é sempre o mesmo murmúrio, fluindo ininterruptamente, como uma única palavra infindável e, por isso, sem significado, porque é o fim que confere o significado às palavras.

Samuel Beckett, in 'Textos para Nada'

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06/10/05

PÉROLAS -21




Enquanto houver fôlego nos meus pulmões
Amarei....
E ainda depois


Safo

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POETAS AMIGOS- 19





De vez em quando, desenho a tua voz sobre o tampo
da secretária, timbre grave em madeira escura
como se fosse ontem que a ouvisse pela primeira vez,
como se a tua ausência não existisse no exercício
dos ventos sobre as superfícies ou dos lodos sobre
as profundidades, de vez em quando não me espanto
com a erosão do silêncio sobre os poemas.


Sandra Costa - http://www.tempodual.blogspot.com/

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05/10/05

DA EDUCAÇÃO - 2

No Dia Mundial dos Professores


Platão -in A Escola de Atenas de Rafael


Durante um exercício de Filosofia

Estou aqui sentado na cadeira que
me cabe como professor, a secretária, o estrado
o negro quadro com restos de giz e marcas de
apagador. A ardósia coberta de falhas, pequenas
feridas nas horas de aprendizagem.
Os alunos aí estão à minha frente, quietos e presos
à rapidez da sua escrita ou à
lentidão que faz de outros a extrema hesitação.
São alunos do curso nocturno e respondem a um
exercício sobre Platão. É tão pouco o que conheço
do mover das suas mãos e deles sei quase e deles
sei tanto sob a distância e a proximidade desta mesa,
deste estrado de aula.
Uma turma pequena, apenas sete alunos, posso
dizer-lhes os nomes: Susana, uma negra de quarenta
anos que vive num seminário adventista(mal
percebo o seu português e irá, decerto, na
pergunta sobre a acusação de Sócrates, escrever
-me deuses com letra maiúscula e falará deles no
singular); Gonçalo que tem dezassete anos e que,
filho de emigrantes, fala melhor alemão do que
a nossa língua. Vem às vezes contar-me de Ian
Curtis, de Patty Smith, de Jim Morrison e de
Rimbaud e em qualquer livraria descobriu um livro
meu por causa de um dos primeiros. Por causa
dessa leitura, oblíqua, junto à estante da livraria,
veio dizer-me que também era monárquico e desde
então, sempre que vem às aulas, traz na lapela,
nos solenes dias de blazer, as armas coroadas
de Portugal.
O Zé Alberto que é o melhor aluno, todos os dias
tenho que interromper o seu discurso sobre a vida
e os esforços para estar vivo, aqui, nesta difícil
cidade. Depois, as raparigas, Mavilde e
Belmira - lembro-me sempre da Benilde do
Régio -, chegam, nunca faltam, são um confuso
poço de silêncio, sem dúvidas, sem questões,
por demais crédulas e indiferentes à
enunciada mentira dos filósofos.
Ainda há a Filomena, mas não é aluna inscrita,
apenas vem assistir aos meus longos monólogos
sobre o Fédon.
Por último o Zé Manel - o único com quem
gostaria de tomar um café depois da prisão
das aulas e saber que livros lê, que vinho
bebe, de que música gosta. (Interrompeu-me
a Susana perguntando se saber e conhecer
são coisas diferentes.)

Mas os meus alunos vêm quase todos embrulhados
em kispos, em coisas pardas e tudo sempre se
passa num tom neutro, pedagógico
até que chegue a hora de nos irmos: eu para
viver, eles para viverem e todos para morrer
e como na Apologia nenhum de nós saberá quem tem
a melhor sorte. Ninguém, excepto
o deus.


João Miguel Fernandes Jorge



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04/10/05

O ECLIPSE





O eclipse


METEMOS as mãos nos bolsos, sem querer, e sentimos na fronte o fino palpitar da sombra fresca, como quando se entra num espesso pinhal. As galinhas recolheram ao poleiro, uma a uma. Em redor, o campo enlutou o seu verde, como se o véu roxo do altar-moI' o cobiçasse. Viu-se, branco, o mar longínquo; e algumas estrelas brilharam, pálidas. Como iam trocando brancura por brancura, os terra­ços! Nós, que lá estávamos, gritávamos, uns para os outros, ditos mais ou menos engra­çados, pequenos e escuros naquele silêncio reduzido do eclipse.
Olhávamos o sol com tudo: com os binóculos de teatro, com o óculo de grande alcance, com uma garrafa, com um vidro fumado. E de toda a parte: da varanda, da escada da cerca, da janela do celeiro, da porta do pátio, pelos seus vidros escarlates e azuis...
Ao ocultar-se o sol (que, um momento antes, tornava tudo duas, três, cem vezes maior e melhor com as suas complicações de luz e ouro), tudo, sem a longa transição do crepúsculo, ficava só e pobre, como se se tivesse trocado ouro primeiro, e depois prata, por cobre. A aldeia parecia uma pequena moeda ferru­genta e sem valor. Que tristes e pequenas as ruas, as praças, a torre, os caminhos dos montes!
Platero além, na cerca, parecia um burro menos verdadeiro, diferente e recortado; outro burro...

Juan Ramon Jimenez, - Platero e Eu
Trad. de José Bento –il. De Bernardo Marques
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