31/05/07

REVIVALISMOS- 4



...não eram lá muito práticos... na caixinha bem avisavam:- Acender riscando para fora; conservar fora do alcance das crianças e em lugar seco.


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ESCREVER - 53



Do poeta fing(e)idor

"A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. (...) o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti. "


Bernardo Soares.Fernando Pessoa

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30/05/07

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 38



A pequena rosa branca

A Rosa do mundo não é para mim.

Para mim quero apenas a pequena rosa branca da Escócia
De cheiro agreste e


doce - e que destroça o coração.

- Hugh MacDiarmad -

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29/05/07

POETAS MEUS AMIGOS - 51



Porque dispões as mãos e dizes que ciciam os astros,
eu procuro intensamente a luz.
tudo se parece com o mistério que redime a vida
como a boca triste, concisa
de um poema.
sempre foi assim o coração que o silêncio celebrou.

mariagomes

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27/05/07

REVIVALISMOS - 3

- já não encontro deste chá...

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DO FALAR POESIA - 65



foto de ana assunção


Em vez do silêncio

Riscar aos poucos, uma
a uma, as imagens, as palavras.
Reduzi-las a um breve núcleo
substantivo. E depois apagar
de novo, uma e outra, uma
e outra. Até à ilusão
da nascente, à nuvem
das águas subterrâneas.

Por uma poesia
que não dissesse. Que não enunciasse.
Que apenas deixasse
nas folhas das árvores
o que se esconde por dentro
do obscuro rumor
indecifrável das palavras.

A arquitectura e a árvore:
um sistema filosófico
dividido entre a perfeição
da matemática e
a claridade iniludível
da experiência. Entre
a razão e a verdade.

Apagar as palavras, uma
a uma, até à ilusão
da primitiva vertigem
criadora. As raízes
da árvore erguendo-se
em vez do silêncio
e em vez do poema.

José Carlos Barros - http://casa-de-cacela.blogspot.com/



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26/05/07

PÉROLAS - 111




Era no tempo em que só havia ar e pássaros. Os pássaros voavam e como não existia mais nada, coisa nenhuma, nem árvores nem pedras, não podiam pousar. Voavam sempre. Um dia o pai de uma cotovia morreu e os pássaros não sabiam o que fazer com o corpo. Então a cotovia resolveu enterrar o corpo morto do pai na sua nuca. E foi assim que surgiu a memória.

(Um corpo morto dentro do nosso próprio corpo, na parte de trás da nossa cabeça, a memória.)




Laurie Anderson - em concerto

encontrado em http://last-tapes.blogspot.com/

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25/05/07

«ENSINOU A SENTIR VELADAMENTE» - 10



Vénus

II

Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina
– Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor-de-rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.

E a vista sonda, reconstrui, compara.
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
– Ó fúlgida visão, linda mentira!

Róseas unhinhas que a maré partira
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...

Camilo Pessanha, Clepsydra

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24/05/07

DE AMICITIA - 56




Não preciso de amigos que mudem quando eu mudo e concordem quando eu concordo. A minha sombra faz isso muito melhor.
Plutarco

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23/05/07

LER OS CLÁSSICOS - 68



Contra as molheres

Esforça-te meu coraçom,
não te mates, se quiseres,
lembra-te que sam molheres.


Lembra-te qu’é por naçer
nenhûa que nam errasse
lembrete que seu prazer,
por bondade e mereçer,
nam vi que dele gostasse,
pois nam te des a paixam,
toma prazer se poderes,
lembra-te que sam molheres.

Descansa, triste, descansa,
que seus males sam vingãças,
tuas lagrimas amansa,
leix’as suas esperanças.
Ca pois naçem sem rezã,
nunca por ella lhesperes;
lembra-te que sam molheres.

Tuas mui grãdes firmezas,
tuas grandes perdições
suas desleais nações
causaram tuas tristezas.
Pois nã te mates em vão,
que quanto mais as quiseres,
veras que sam molheres.

Que te presta padeçer,
que taproveita chorar,
pois nunc’outras ham de ser,
nem sam nunca de mudar?
Deix’as com sua naçam,
seu bem nunca lho esperes;
lembra-te que sam molheres.

Não te mates cruamente
por que fez ta grande errada,
que quem de si se nam sente,
por ti nam lhe dará nada.
Vive lançando pregam
por hu fores e vieres,
que sam molheres, molheres.

Cabo

Espanha foi já perdida
por Letabla hûa vez,
e a Troia destroida
por males qu’Elena fez.
Desabafa, coraçam,
vive, nam te desesperes,
que quem fez pecar Adam
foi a mãi destas molheres.

Jorge d’Aguiar - in Cancioneiro Geral (1516)

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22/05/07

REVIVALISMOS - 2



As minhas primeiras leituras ainda foram feitas à luz destes candeeiros...

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POETAS MEUS AMIGOS - 50




E não podendo ele virar ao contrário
a ampulheta
nem sequer impedir a passagem dos grãos
de areia
contentou-se em sentar a uma mesa azul
de um bar de ladeira
onde, olhando o crepúsculo, teve a impressão
de que tudo estava calmo.

Walter Cabral de Moura

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21/05/07

LEITURAS - 42




Uma simples flor nos teus cabelos claros

[...]
«Mas a meio caminho voltou para trás, direita ao mar. Paulo ficou de pé no areal, a vê-la correr: primeiro chapinhando na escuma rasa e depois contra as ondas, às arrancadas, saltando e sacudindo os braços, como se o corpo, toda ela, risse.
Uma vaga mais forte desfez-se ao correr da praia, cobriu na areia os sinais das aves marinhas, arrastou alforrecas abandonadas pela maré. Eram muitas, tantas como Paulo não vira até então, espapaçadas e sem vida ao longo do areal. O vento áspero curtira-lhes os corpos, passara sobre elas, carregado de areia e de salitre, varrendo a costa contra as dunas, sem deixar por ali vestígios de pegada ou restos de alga seca que lhe resistissem.
- Marcaste o despertador?
- Hã?»
- O despertador, Quim. Para que horas o puseste?
...E tudo à volta era névoa, fumo do mar rolando ao lume das águas e depois invadindo mansamente a costa deserta. Havia esse sudário fresco, quase matinal, embora, cravado no céu verde-ácido, despontasse já o brilho frio da primeira estrela do anoitecer...
- Desculpa, mas não estou descansada. Importas-te de me passar o despertador?
- O despertador?
- Sim, o despertador. Com certeza que não queres que eu me levante para o ir buscar. És de força, caramba.
- Pronto. Estás satisfeita?
-Obrigada. Agora lê à vontade, que não te torno a incomodar. Eu não dizia? Afinal não lhe tinhas dado corda... Que horas são no teu relógio? Deixa, não faz mal. Eu regulo-o pelo meu.
- Mais um mergulho - pedia a rapariga.
A dois passos dele sorria-lhe e puxava-o pelo braço:
- Só mais um, Paulo. Não imaginas como a água está estupenda. Palavra, amor. Estupenda, estupenda, estupenda.
Uma alegria tranquila iluminava-lhe o corpo. A neblina bailava em torno dela, mas era como se a não tocasse. Bem ao contrário: era como se, com a sua frescura velada, apenas despertasse a morna suavidade que se libertava da pele da rapariga.
- Não, agora já começa a arrefecer - disse Paulo. - Vamo-nos vestir?
Estavam de mãos dadas, vizinhos do mar e, na verdade, quase sem o verem. Havia a memória das águas na pele cintilante da jovem ou no eco discreto das ondas através da névoa; ou ainda no rastro de uma vaga mais forte que se prolongava, terra adentro, e vinha morrer aos pés deles num distante fio de espuma. E isso era o mar, todo o oceano. Mar só presença. Traço de água a brilhar por instantes num rasgão do nevoeiro.
Paulo apertou mansamente a mão da companheira:
- Embora?
- Embora - respondeu ela.
E os dois, numa arrancada, correram pelo areal, saltando poças de água, alforrecas mortas e tudo o mais, até tombarem de cansaço.» [...]

José Cardoso Pires- O Hóspede de Job

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20/05/07

OMNIA VINCIT AMOR - 77




A Francisco

suave como o perigo atravessaste um dia
com a tua mão impossível a frágil meia-noite
e a tua mão valia a minha vida, e muitas vidas
e os teus lábios quase mudos diziam aquilo que era o pensamento.

passei uma noite colado a ti como a uma árvore de vida
porque era suave como o perigo,
como o perigo de viver de novo.

leopoldo maria panero-
trad.Gil de Sousa, 1980
publicado em http://canaldepoesia.blogspot.com/

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19/05/07

POEMAS COM ROSAS DENTRO -37


composição de augusto mota

Porque hoje é sábado...

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NOCTURNOS - 31



Que a noite seja perfeita...

Que a noite seja perfeita se formos dignos dela
Nenhuma pedra branca nos indicava o caminho
Onde as fraquezas vencidas acabavam de morrer

Íamos para além dos mais longínquos horizontes
Com os nossos ombros e com as nossas mãos
E esse entusiasmo tamanho
Até ao brilho das abóbadas insondáveis
E essa fome de permanecer
E essa sede de sofrer
Sufocando-nos a garganta
Como mil enforcamentos

Partilhámos as nossas sombras
Mais do que as nossas luzes
Mostrámo-nos
Mais gloriosos com as nossas feridas
Do que com as vitórias esparsas
E as manhãs felizes

Construímos muro a muro
A negra muralha de nossas solidões
E essas cadeias de ferro prendendo o nosso andar
Forjadas com o mais duro metal

Que perfeita seja a noite em que nos afundamos
Destruímos toda a felicidade e toda a ternura
E os nossos gritos não terão
Doravante mais do que o trémulo eco
Das poeiras perdidas
Nos abismos do nada.


Alain Grandbois (Canadá, 1900-1975)
Trad. de Ruy Ventura

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18/05/07

CAMONIANAS - 32



Décimas ante um retrato de Camões

Se, na noite de chuva, a Tempestade
em solitários galhos acoitados,
revivesse os Navios naufragados
e o travoso gemer da Soledade;
se, da grave assonância da Vontade
entrevesse se pudesse o sacrifício
nesse claro e cansado Frontispício
quem, mais do que teus Olhos, cantaria
da vida o Caso cego e a galhardia,
a Luz flamante e o sacro Desperdício?

Teus olhos! Mas quem pode apaziguá-los?
Se, num, a flecha agónica demora,
noutro há bruma, salgueiro e Harpa sonora,
entre os passos do Rei com seus vassalos.
O pó e o sangue,as patas dos Cavalos
repousam nesse sulco fatigado.
E, se o bravo Queixume informulado
evoca os destroços areais,
o ressonar dos Bosques provençais
doura na Morte a mágoa do pecado.

Pensar que foste criança e que aspiraste
o cheiro da Madeira mal queimada;
que, ao perseguir, insone, a Madrugada,
a chama do Desterro desejaste.
O Sal marinho, as folhas que esmagaste,
e vida e nome, pássaro e Memória.
Pois, se Fortuna e treva derisória
urdiram tua Sorte alada e escura,
foi que o porvir tecera, na Espessura,
da Cadência já morta o Canto e a glória.

Pureza e dolo. A Sombra se amontoa
- destroço ressurrecto e trespassado -
na prisão a quem a um tempo foste atado,
no Barco que te chama e te enevoa.
Debalde! A Fonte é cortadora Proa,
barba barroca é Quilha e madeirame.
E o Cedro, a Infanta, a coifa de beirame,
tudo isso e tudo mais que não se exprime
- que não se diz - e é o que talvez redime
o atravessar das águas e o Velame.

Assim, não mais o som desse Acalanto,
não mais o Apelo, só, da já passado:
que teu Anjo o receba, dissipado,
numa Páscoa de fogo e tenso Canto.
Pois se o Eco de sono e louro acanto
não te pôde levar o que pressente,
num sussurro fraterno e Sopro ardente
chegue a ti meu Duende extraviado
e o Sonho, anseio extinto e renovado,
que é Pena e mudez de meu presente.


Ariano Suassuna
O Pasto incendiado -1953

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17/05/07

REVIVALISMOS - 1

Tinha um pequenino, de brincar, quando criança...ainda o tenho.

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PENSAR - 63


rodin - o pensador

O mais que o homem verdadeiro procura, em seu conflito com o mundo, é colocar uma precária ordem em sua vida e um certo estilo em sua melancolia, em seu destino, que é, por natureza, despedaçado, triste, falhado, enigmático e trágico. Para isso, o homem tem duas fontes, duas raízes de defesa – o choro e o riso. Mas o choro e o riso verdadeiros, aqueles fincados profundamente e cujo ritmo se alimenta de sangue e de subterrâneo.

Ariano Suassuna – in Romance d’ A pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta.

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16/05/07

DESASSOSSEGOS - 53




silêncios

fala-me da ausência do mundo,
do enorme silêncio
que me separa do rumor do tempo.

sim,
digo-lhe,
semeei dunas brancas ao longo do que existi,
realizei um por um os horizontes
e caminhei.

nos passos,
levei a sabedoria de anoitecer e de madrugar.

exerci-a
na altitude dos que me perguntaram o nome.
naqueles que me questionaram o olhar
ou a palavra
nos que, suspensos da fronteira de sombras,
esperaram para me ouvirou para me falar.

e usei a voz como um pássaro usa as sementes.

digo-lhe:
não, não apaguei o mundo da minha vontade
apenas o areei de solidão
e fiz dele um deserto
onde alguém se perdesse.

gil t. sousa -poemas2001

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15/05/07

O PRAZER DE LER - 63



Como alguém disse

Não é que eu seja sábio, como entre as de mármore alguém disse ser
sempre uma
coluna de madeira,
mas creio já ter visto um livro brilhar como
se fosse o mar quem nele ao rebentar depositasse o texto

Luís Miguel Nava

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14/05/07

ESCREVER - 52




"Escrevo para me livrar dos sonhos e pesadelos"

Jeff VanderMeer

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LER OS CLÁSSICOS - 67




Onde porei meus olhos que não veja
A causa donde nasce meu tormento?
A que parte irei co pensamento
Que pera descansar parte me seja?

Já sei como s'engana quem deseja,
Em vão amor, firme contentamento,
De que, nos gostos seus, que são de vento,
Sempre falta seu bem, seu mal sobeja.

Mas inda, sobre claro desengano,
Assim me traz est'alma sogigada,
Que dele está pendendo o meu desejo;

E vou de dia em dia, de ano em ano,
Após um não sei quê, após um nada,
Que, quanto mais me chego, menos vejo.

Diogo Bernardes- S.XVI

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13/05/07

PÉROLAS - 110


foto de eli

Ah, o passado,
O tempo onde se acumularam
os dias lentos.

Busson - haiku

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12/05/07

RETRATOS DE UM PORTUGAL QUE(QUASE) JÁ NÃO HÁ - 14


foto de artur pastor

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LEITURAS - 41



[...] Leves e de um azul metálico, movidas por uma brisa contrária suave, quase imperceptível, as ondas do Mar Adriático rolavam ao encontro da armada imperial, quando esta, tendo à esquerda as colinas rasas e cada vez mais próximas da costa calabresa, se dirigia para o porto de Brindisi e então, quando a solidão do mar cheia de sol, mas mesmo assim tão prenunciadora de morte, deu lugar à pacífica alegria da actividade humana, quando as águas, suavemente brilhantes com a proximidade da existência de homens e das suas casas, se povoavam de variadíssimos barcos, uns que também se dirigiam para o porto, outros que dali saíam, então, quando os barcos de pescadores com as suas velas castanhas estavam precisamente a sair dos pequenos molhes de todas as inúmeras aldeias e povoações ao longo da orla salpicada de branco, para se dirigirem à sua pesca nocturna, então a água ficou quase tão lisa como um espelho; como uma madrepérola, abrira-se por cima a concha do céu, anoitecia, e sentia-se o cheiro a lenha das lareiras, sempre que o vento trazia os sons da vida, uma martelada ou um grito, desde a costa até ao mar. [...]

Hermann Broch,A morte de Virgílio

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11/05/07

POETAS MEUS AMIGOS - 49



primícias

te conheci bem antes dessa manhã
quando te inventei
te trago há tanto tempo!
a tua identidade é um pouco a minha,
teu pensamento deita em meu repouso

te conheci bem antes
e te reconhecer
é como andar de madrugada pelo campo

Adelaide Amorim
http://inscries.blogspot.com/



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10/05/07

DA EDUCAÇÃO - 25


foto de robert doisneau


É verdade que nós ensinamos através daquilo que somos, mais do que com aquilo que sabemos e que, na nossa maneira de ser com a criança ou com o grupo, nós projectamos a nossa história afectiva, as nossas angústias. –CE 61

Correio da Educação(CE) - CE@asa.pt

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09/05/07

OMNIA VINCIT AMOR - 76



Legenda
para aquela estrela
azul
e fria
que me apontaste
já de madrugada:
amar é entristecer
sem corrompermos
nada.

Carlos de Oliveira

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08/05/07

PÉROLAS - 109




A tarde

Rodam as ondas frágeis
dos entardeceres
como limpas canções de mulheres.


José Gorostiza (México)
Trad. de Horácio Costa

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07/05/07

DO FALAR POESIA - 64




malas sem atenção

Malas sem atenção: assim parecem
ser a maioria dos poemas.
Malas abandonadas num aeroporto
que ninguém busca ou reclama.
Malas que não se podiam deixar
e por isso mesmo se deixam,
quando nos avisam pelo altifalante:
"... por motivos de segurança
não deixem abandonada qualquer mala
nem se aproximem se virem uma".

Isto é, por sua vez, a leitura de um poema:
o encontro inesperado de um mundo
metido e comprimido num pequeno
concentrado de tempo - coisas de vestir,
vários objectos de companhia,
outros de primeira necessidade,
roupa interior muita, até demais,
e tudo, em geral desordenado, revolvido
contra não sabemos quê ou quem,
mas formando uma estranha unidade -,
o envolvimento e as entranhas de um corpo
desconhecido, uma segunda pele
que gostamos de usar de vez em quando,
- mudados, revestidos com outros olhos -,
ou então nós mesmos mais que nunca -
finalmente despidos do que sobra
e na nossa nudez reencontrados.

àlex susanna -poemas
tradução de egito gonçalves

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06/05/07

NO DIA DE TODAS AS MÃES - A QUE AINDA TEMOS OU A QUE TIVEMOS




Mãe

Teu perfil quieto
de voz azul.


Tuas mãos antigas
de expressão concreta

e leve,
dão corpo às palavras
exactas do teu olhar,
agora no longe
e «denso azul silêncio»
da depuração
da alma
acolhida pelo sossego do mar...

Andrea Paes (Moçambique)
encontrado em
http://fazendocaminho.blogspot.com/

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05/05/07

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 36


foto de augusto mota

Rosa vermelha


A esposa do guerreiro está sentada à janela.
De coração aflito, borda uma rosa branca numa almofada de seda.
Picou-se no dedo! Seu sangue corre na rosa branca, que se torna[vermelha.
Seu pensamento vai ter com seu amado, que está na guerra
e cujo sangue tinge, talvez, a neve de vermelho.
Ouve o galope de um cavalo...Chega, enfim, seu amado?
É apenas o coração que lhe salta com força no peito...
Curva-se mais sobre a almofada e borda com prata

as lágrimas que cercam a rosa vermelha.

Li Po

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04/05/07

LER OS CLÁSSICOS - 66



A Manhã fresca está, sereno o vento,
O monte verde, o rio transparente,
O bosque ameno; e o prado florescente
Fragâncias exalando cento a cento.

O Peixe, a Ave, o Bruto, o branco Armento,
Tudo se alegra; e até sair a gente
Dos rústicos casais se vê contente,
E discorrer com vário movimento.

Este cava, outro ceifa e aquele o gado
Traz no campo a pastar de posto em posto;
Outro pega na fouce, outro no arado.

Tudo alegre se mostra: e só disposto
Tem contra mim o indispensável fado,
Que em nada encontre alívio, em nada gosto.

Abade de Jazente (1719-1789)

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03/05/07

LEITURAS- 40




[...] Então João Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra e teso na estrada, com o coco à banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que estabelecia um resumo:
- Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem vocês, sabe o Sr. Padre Soeiro quem ele me lembra?
- Quem?-
Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o Sr. Padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua idEia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acovarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
- Quem?...
- Portugal.
Eça de Queiroz.A Ilustre Casa de Ramires

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02/05/07

NOCTURNOS - 30



Na escuridão esperamos!
Vinde, vós que escutais,
ajudai-nos na nossa viagem nocturna:
agora nenhum sol brilha,
agora nenhuma estrela reluz.
Vinde, mostrai-nos o caminho:
a noite não é favorável.
A noite está de pálpebras cerradas.
A lua esqueceu-se de nós.
Esperamos na escuridão.


Índios Iroqueses - América do Norte
in ‘Rosa do Mundo – 2001Poemas para o Futuro’

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01/05/07

NESTE 1ºDE MAIO




Operário em construção

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as asas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De facto como podia
Um operário em construção
Compreender porque um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento

Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operário
Um operário em construção.

Olhou em torno: a gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operárioS
oube naquele momento
Naquela casa vazia
ue ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro dessa compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia "sim"
Começou a dizer "não"
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse:
Não!E o operário fez-se forte
Na sua resolução

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação.
- "Convençam-no" do contrário
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isto sorria.

Dia seguinte o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu por destinado
Sua primeira agressão
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras seguiram
Muitas outras seguirão
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo contrário
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse e fitou o operário
Que olhava e reflectia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria
O operário via casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objectos
Produtos, manufacturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fracturas
A se arrastarem no chão
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção

Vinicius de Moraes

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