CAMONIANAS - 32
Décimas ante um retrato de Camões
Se, na noite de chuva, a Tempestade
em solitários galhos acoitados,
revivesse os Navios naufragados
e o travoso gemer da Soledade;
se, da grave assonância da Vontade
entrevesse se pudesse o sacrifício
nesse claro e cansado Frontispício
quem, mais do que teus Olhos, cantaria
da vida o Caso cego e a galhardia,
a Luz flamante e o sacro Desperdício?
Teus olhos! Mas quem pode apaziguá-los?
Se, num, a flecha agónica demora,
noutro há bruma, salgueiro e Harpa sonora,
entre os passos do Rei com seus vassalos.
O pó e o sangue,as patas dos Cavalos
repousam nesse sulco fatigado.
E, se o bravo Queixume informulado
evoca os destroços areais,
o ressonar dos Bosques provençais
doura na Morte a mágoa do pecado.
Pensar que foste criança e que aspiraste
o cheiro da Madeira mal queimada;
que, ao perseguir, insone, a Madrugada,
a chama do Desterro desejaste.
O Sal marinho, as folhas que esmagaste,
e vida e nome, pássaro e Memória.
Pois, se Fortuna e treva derisória
urdiram tua Sorte alada e escura,
foi que o porvir tecera, na Espessura,
da Cadência já morta o Canto e a glória.
Pureza e dolo. A Sombra se amontoa
- destroço ressurrecto e trespassado -
na prisão a quem a um tempo foste atado,
no Barco que te chama e te enevoa.
Debalde! A Fonte é cortadora Proa,
barba barroca é Quilha e madeirame.
E o Cedro, a Infanta, a coifa de beirame,
tudo isso e tudo mais que não se exprime
- que não se diz - e é o que talvez redime
o atravessar das águas e o Velame.
Assim, não mais o som desse Acalanto,
não mais o Apelo, só, da já passado:
que teu Anjo o receba, dissipado,
numa Páscoa de fogo e tenso Canto.
Pois se o Eco de sono e louro acanto
não te pôde levar o que pressente,
num sussurro fraterno e Sopro ardente
chegue a ti meu Duende extraviado
e o Sonho, anseio extinto e renovado,
que é Pena e mudez de meu presente.
Ariano Suassuna
O Pasto incendiado -1953
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