31/03/09

PÉROLAS - 160




- Poema didático -

Explicar-te como te amo?...
Bom, comecemos pela cor do vento...

- José P. di Cavalcanti Jr. -

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30/03/09

PENSAR - CITAÇÕES - 3




«Não ter memória é o máximo da solidão. Possuir memórias não compartilhadas, diferentes do grupo do qual se está participando, é como estar numa ilha cercado de impressões alheias por todos os lados. Fica-se a olhar o mar, pronto para acenar ao primeiro navio que o atrevesse.»

josé roldãoexcerto de Memórias da infância dos outros
in http://aeiou.visao.pt/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=vs.stories/498563

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29/03/09

OMNIA VINCIT AMOR -119



Cantiga de viúvo

A noite caiu na minh’alma,
fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo, me abraçou.
Era a sombra de meu bem
que morreu há tanto tempo.

Me abraçou com tanto amor
me apertou com tanto fogo
me beijou, me consolou.

Depois riu devagarinho,
me disse adeus com a cabeça
e saiu. Fechou a porta.
Ouvi seus passos na escada.
Depois mais nada…acabou.

Carlos Drummond de Andrade

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28/03/09

POR ISSO EU SOU DAS ILHAS DE BRUMA












Ainda sinto os pés no terreiro
Onde os meus avós bailavam o pezinho
A bela Aurora e a Sapateia
É que nas veias corre-me basalto negro
E na lembrança vulcões e terramotos



Por isso é que eu sou das ilhas de bruma
Onde as gaivotas vão beijar a terra

Se no olhar trago a dolência das ondas
O olhar é a doçura das lagoas
É que trago a ternura das hortênsias
No coração a ardência das caldeiras.

Por isso é que eu sou das ilhas de bruma
Onde as gaivotas vão beijar a terra

É que nas veias corre-me basalto preto

No coração a ardência das caldeiras
O mar imenso me enche a alma
E tenho verde, tanto verde a indicar-me a esperança.


Autor: José Ferreira- Homenagem ao povo açoriano

foto minha
Pode ser visto/ouvido em
http://www.youtube.com/watch?v=xANEcNQPqPI

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27/03/09

O PRAZER DE LER - 96

Amigos: de regresso das «ilhas de bruma», aqui me têm:



A minha inclinação em matéria de livros (disse ele), de todos os que estão presentes é bem conhecida; somente poderei dar agora de novo a razão dela. Sou particularmente afeiçoado a livros de história verdadeira, e, mais que às outras, às do reino em que vivo e da terra onde nasci; dos Reis e Príncipes que teve; das mudanças que nele fez o tempo e a fortuna; das guerras, batalhas e ocasiões que nele houve; dos homens insignes, que, pelo discurso dos anos, floresceram; das nobrezas e brasões que por armas, letras, ou privança se adquiriram. O que me inclinou à escolha desta lição que tive alguma de um homem muito douto em o que o deve desejar de ser e parecer o que é nascido; ao qual ele dizia que o que mais convinha que soubesse era o apelido que tinha, donde lhe veio, quem foram seus passados, que armas lhe deixaram, a significação e fundamento da figura delas, como se adquiriram ou acrescentaram, os Reis que reinaram na sua pátria, as crónicas deles, os princípios, as conquistas, as empresas e o esforço dos seus naturais; porque, falando deles nas terras estranhas, ou na sua com estrangeiros, saiba dar verdadeira informação de suas cousas. E, alcançadas estas, lhe estará bem tudo o que mais puder saber das alheias. E, na verdade, nenhuma lição pode haver que mais recreie e aproveite que a que sei que é verdadeira, e, por natural, ao desejo dos homens deleitosa.

Francisco Rodrigues Lobo-Corte na Aldeia

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19/03/09

BREVE PAUSA

img de sorolla

«Me aguardem»...volto breve

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OS MEUS POETAS - 106


goya, la maja desnuda

Crónica feminina

estava nua, só um colar lhe dava
horizontes de incêndio sobre o peito,
a transmutar, num halo insatisfeito,
a rosa de rubis em quente lava.

estava nua e branca num estreito
lençol que o fim do sono desdobrava
e a noite era mais livre e a lua escrava
e o mais breve pretérito imperfeito

só o tempo verbal lhe fugiria,
no alongar dos gestos e requebros,
junto do espelho quando as aves vão.

toda a nudez, toda a nudez, toda a melancolia
a dor no mundo, a deslembrança, a febre, os
olhos rasos de água e solidão

Vasco da Graça Moura

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18/03/09

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 65



A pequena rosa branca


A Rosa do mundo não é para mim.
Para mim quero apenas a pequena rosa branca

[da Escócia
De cheiro agreste e doce – e que destroça o coração.


Hugh MacDiarmad

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17/03/09

NOCTURNOS - 66




Lírio

Lua de neve quebrada
em seis pedaços de seda.
Luz de Lua que se queda
em meio às folhas cravada.
Lua em seis raios cortada.
Luz em pétalas de alvura.
Sobre a rama verde-escura
cetim branco e perfumado.
Nácar de Lua rasgado
em seis raios de luz pura.


Rafaela Chacón Nardi ( Cuba )
Tradução de Aurélio Buarque de Holanda

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16/03/09

LEITURAS - 105




"Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto.
Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência;
e o melhor da obrigação é quando, a força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa e a hipocrisia, que é um vício hediondo.
Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade!
Como a gente pode sacudir fora a capa,deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser!
Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há plateia.
O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento.
Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.

Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

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15/03/09

PÉROLAS - 159



o perfume


as mãos cheiram a laranja
e os teus dedos são os gomos
que acariciam os lábios.

porque vens segura e breve
o silêncio é o irmão
que me contém o desejo.

o perfume é a palavra
gravada na laranjeira.

afiz ibn amahd kuzmãn

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14/03/09

DESASSOSSEGOS - 86



[Sobre o destino]



Nenhuma estrela nos guia
no mundo, nenhuma palavra
dos livros, nenhum fio
por entre o labirinto
das horas. Somos o caminho
que fazemos:
erros sucessivos,
perdas, muros erguidos
contra o rumo
dos astros, o orgulho,
as primeiras lágrimas,
a ilusão do amor.

José Carlos Barros

in Casa da Cacela-http://casa-de-cacela.blogspot.com/

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13/03/09

DO FALAR POESIA - 95




[Art poétique]

[...]

Car nous voulons la nuance encore,
Pas la couleur, rien que la nuance.

Verlaine

Excerto publicado em modus vivendi - http://amata.anaroque.com/

Obs.: de facto a poesia é intreduzível.Assim para a palavra nuance: por mim gostaria de traduzir por «tom» ou «tonalidade»; mas já vi traduzido por «matiz»...Que me dizem?

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POETAS MEUS AMIGOS - 100




antes do tempo da pergunta voltada para trás
antes das estrelas iminentes
antes das vozes caladas na chuva
antes da rosa

dias há para perceber as alturas antiquíssimas
que viajam em vertigem


maria costa

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12/03/09

OS MEUS POETAS - 105




Lágrima*


Manhã de Junho ardente. Uma encosta escavada,
Seca, deserta e nua, à beira d'uma estrada.

Terra ingrata, onde a urze a custo desabrocha,
Bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha.

Sobre uma folha hostil duma figueira brava,
Mendiga que se nutre a pedregulho e lava,

A aurora desprendeu, compassiva e divina,
Uma lágrima etérea, enorme e cristalina.

Lágrima tão ideal, tão límpida, que ao vê-la,
De perto era um diamante e de longe uma estrela.

Passa um rei com o seu cortejo de espavento,
Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento.

- "No meu diadema, disse o rei, quedando a olhar,
Há safiras sem conta e brilhantes sem par,

Há rubins orientais, sangrentos e doirados,
Como beijos d'amor, a arder, cristalizados."

Há pérolas que são gotas de mágoa imensa,
Que a lua chora e verte, e o mar gela e condensa.

"Pois, brilhantes, rubins e pérolas de Ofir,
Tudo isso eu dou, e vem, ó lágrima, fulgir

Nesta c'roa orgulhosa, olímpica, suprema,
Vendo o Globo a teus pés do alto do teu diadema!"

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.

Couraçado de ferro, épico e deslumbrante,
Passa no seu ginete um cavaleiro andante.

E o cavaleiro diz à lágrima irisada:
"Vem brilhar, por Jesus, na cruz da minha espada!

"Far-te hei relampejar, de vitória em vitória,
Na Terra Santa, à luz da Fé, ao sol da Glória!

E à volta há-de guardar-te a minha noiva, ó astro,
Em seu colo auroreal de rosa e de alabastro.

E assim alumiarás com teu vivo esplendor
Mil combates de heróis e mil sonhos d'amor!"

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa.

Montado numa mula escura, de caminho,
Passa um velho judeu, avarento e mesquinho.

Mulas de carga atrás levavam-lhe o tesoiro:
Grandes arcas de cedro, abarrotadas d'oiro.

E o velhinho andrajoso e magro como um junco,
O crânio calvo, o olhar febril, o bico adunco,

Vendo a estrela, exclamou: "Oh Deus, que maravilha!
Como ela resplandece, e tremeluz, e brilha!

"Com meu oiro em montão podiam-se comprar
Os impérios dos reis e os navios do mar,

E por esse diamante esplêndido trocara
Todo o meu oiro imenso a minha mão avara!"

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.

Debaixo da figueira, então, um cardo agreste,
Já ressequido, disse à lágrima celeste:

"A terra onde o lilaz e a balsamina medra
Para mim teve sempre um coração de pedra.

Se a queixar-me, ergo ao céu os braços por acaso,
O céu manda-me em paga o fogo em que me abraso.

Nunca junto de mim, ulcerado de espinhos,
Ouvi trinar, gorgear a música dos ninhos.

Nunca junto de mim ranchos de namoradas
Debandaram, cantando, em noites estreladas...

Voa a ave no azul e passa longe o amor,
Porque ai! Nunca dei sombra e nunca tive flor!...

Ó lágrima de Deus, ó astro, ó gota d'água,
Cai na desolação desta infinita mágoa!"

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Tremeu, tremeu, tremeu... e caiu silenciosa!...

E algum tempo depois o triste cardo exangue,
Reverdecendo, dava uma flor cor de sangue,

Dum roxo macerado, e dorido, e desfeito,
Como as chagas que tem Nosso Senhor no peito...

E ao cálix virginal da pobre flor vermelha
Ia buscar, zumbindo, o mel doirado a abelha!...

Guerra Junqueiro

* este poema, de um autor de que muito gosto, vai, em especial, para a Ana Assunção - que recentemente me ofereceu um livrinho com a Oração ao Pão, também deste poeta.

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11/03/09

A ESTA HORA ...

...é apresentado, na Casa Fernando Pessoa, o livro, já aqui recomendado, DISPERSÃO - POESIA REUNIDA de Nuno Dempster. Deixo.dado que não posso estar nesta apresentação, um dos poemas:


"

Evocação

Cansei-me deste exílio de onde há dias
fugi na direcção do mar. A gente
abandonara a praia, os gritos e os navios,
que nunca navegaram, tinham fundeado
na areia onde as gaivotas devoravam
as pegadas humanas, deixando as suas
que o vento apagaria à noite,
e as ondas repetiam a espúria eternidade.
Que mais posso dizer? Que fui eu quem voltoua
o exílio, que os cedros escurecem,
que os dias não tornaram mais com alegria,
que vejo na cidade, em janelas como esta,
caminhos incompletos atrás das vidraças
e, à distância, outra larga frente ao mar,
onde, olhando, o teu vulto permanece.

Nuno Dempster in "Dispersão - Poesia Reunida",
Edições Sempre-Em-Pé,Águas Santas, 2008


[uma opinião sobre o livro:a de henrique fialho: http://antologiadoesquecimento-leituras.blogspot.com/2009/03/dispersao.html]

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ESCREVER - 77






Escova


Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos algum vestígio de antigas civilizações que estariam enterradas por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entresonhado, que eu estava escovando palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora.

Manoel de Barros - in Memórias inventadas. A infância.

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10/03/09

MEMÓRIA



para sempre

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.


Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
mistério profundo —
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Carlos Drummond de Andrade

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09/03/09

CAMONIANAS - 53


Imagem: ingres



Vós, que de olhos suaves e serenos,
Com justa causa a vida cativais,
E que os outros cuidados condenais
Por indevidos, baixos e pequenos;
Se ainda do amor domésticos venenos
Nunca provastes, quero que saibais
Que é tanto mais o amor depois que amais
Quanto são mais as causas de ser menos.
E não cuide ninguém que algum defeito,
Quando na cousa amada se apresenta,
Possa diminuir o amor perfeito;
Antes o dobra mais; e se atormenta;
Pouco a pouco o desculpa o brando peito;
Que amor com seus contrários se acrescenta.
Luis Vaz de Camões

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08/03/09

EFEMÉRIDES - 54 - NO DIA INTERNACIONAL DA MULHER-2009

"Desde o princípio tiveram os homens de se julgar semideuses caídos de sua graça por obra da mulher; e logo depois tiveram que se inventar redimidos através do ventre de nova mãe, essa santa, essa capaz de conhecer Deus no seu ventre e de no seu ventre incarnar o deus salvador, depois chamado o filho do homem – que ironia rebuscada – na sua vida e nos seus actos exemplares. Porque o homem vai fazendo o mundo e cavando o seu túmulo, e vai chamando a mulher, então dizendo-lhe «mãe», para que esta lhe nomeie o mal e o bem, e lho signifique, e tome em si o absurdo insuportável da ordem das coisas, e vai o homem fazendo o mundo sobre o ventre acolhedor e produtor da mulher, então dizendo-lhe «coisa de mim», e posto na mulher o mal e o bem e o absurdo insuportável da ordem das coisas é então justo que seja ela a primeira vítima, ela a culpada até ao momento em que finalmente o homem chama a mulher, dizendo-lhe «mulher», e repara que está vazio o lugar a seu lado"

[Maria Isabel Barreno,Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta em Novas Cartas Portuguesas, 1ªed.1972]

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07/03/09

PENSAR - 92 /SENTIR


foto de ana assunção

À infância só se chega partindo de muito longe. A infância é aí, onde partes, não onde chegas. Olha para trás. Que vês? Nada. A memória é a única coisa que verdadeiramente te pertence, mas lembras-te de um estranho. Como poderias, há muitos anos, saber que eras apenas a lembrança de um estranho:

tu?

Lembras-te do carrinho de pau? Lembras-te do poço? O que havia debaixo da cama? O que estava escondido atrás dos cortinados?

Palavras é tudo o que tens. O carrinho de pau: palavras. O cão: palavras. O medo: palavras. Alguma vez tiveste outra coisa?



Manuel António Pina
Encontrado em http://www.theresonly1alice.blogspot.com/

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06/03/09

OMNIA VINCIT AMOR -118


retrato de cecilia por arpad szenes

desimportância

O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma!

Desfolha-se por quem?

Para quem se perfuma?

O meu amor não tem

importância nenhuma.

Cecília Meireles

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05/03/09

«ENSINOU A OBSERVAR EM VERSO» -17


fonte: arquivo da C.M.L de Lisboa


Num bairro moderno

A Manuel Ribeiro


Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se os nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.

Rez de chaussée repousam sossegados,

Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu conchego,

E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,

Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a:

Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.

Do patamar responde-lhe um criado:

"Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais". E muito descansado,
Atira um cobre ignóbil, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.

Subitamente,- que visão de artista!

- Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!

Bóiam aromas, fumos de cozinha;

Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma e outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha , por anatomia,

Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas.
Descobria Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,

Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas - os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas , um semblante

Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,

Vi nos legumes carmes tentadoras,
Sangue na ginja vivida, escarlate,
Bons corações, pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros nas cenouras.

O sol dourava o céu. E a regateira,

Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me prazenteira:
"Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!"...

Eu acerquei-me dela sem desprezo;

E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.

"Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!"

E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.

E enquanto sigo para o lado oposto,

E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de Agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira

Duma janela azul; e como o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias,

Oiço um canário - que infantil chilrada!-
Lidam menages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz, na sua chita,

O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.

E, como as grossas pernas dum gigante,

Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.

Lisboa, Verão de 1877.

Cesário Verde

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04/03/09

LEITURAS -104



A incapacidade de ser verdadeiro

Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões-da-independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas.

A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias.

Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça:
- Não há nada a fazer. Este menino é mesmo um caso de poesia.

Carlos Drummond de Andrade, Contos Plausíveis
encontrado em http://petalasdealcachofra.blogspot.com/

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03/03/09

UMA ATITUDE SE IMPÕE: AFRONTAMENTO - 22



O que faz falta

zeca afonso



Para ouvir - a letra vai com o vídeo:

http://www.youtube.com/watch?v=uVTqO9xEYNs

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02/03/09

POETAS MEUS AMIGOS - 99


foto de maria gomes

cada palavra deve ser o que és


não escrevas a palavra pedra se não tens à mão
uma pedra
não digas a palavra água se nunca quiseste morrer
não penses a palavra fogo se o teu coração não arder

guarda vagarosamente cada som
silenciosamente trabalha o desenho de cada letra
porque a um poeta é reservado
o alfabeto
o fogo
uma escada de rubis

maria azenha

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01/03/09

CONVITE: LANÇAMENTO DE «DISPERSÃO» EM LISBOA



Porque pouco legível - pode,naturalmente, fazer-se zoom sobre a imagem, - aqui vai o essencial:
Lançamento do livro Dispersão, de Nuno Dempster (que já recomendei no blogue): Dia 11 de março, pelas 18:30, na Casa Fernando Pessoa. Apresentado pelo poeta António Cândido Franco.

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PÉROLAS - 158



Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.


Clarice Lispector

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