31/07/06

OMNIA VINCIT AMOR - 55




Após Longo Silêncio

A palavra após longo silêncio; certo é que,
Distantes ou mortos todos os outros amantes,
Oculta pela sombra a luz hostil,
Corridas as cortinas sobre a noite inimiga,
Dissertemos e dissertemos
Acerca do supremo tema da Arte e do Canto.
A decrepitude física é sabedoria; jovens
Nos amávamos e éramos ignorantes.

William Butler Yeats
Tradução de José Agostinho Baptista

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30/07/06

DESASSOSSEGOS - 39


fotografia de Jorge Molder

As janelas

Nestas salas escuras, onde vou passando
dias pesados, para cá e para lá ando
à descoberta das janelas. - Uma janela
quando abrir será uma consolação. -
Mas as janelas não se descobrem, ou não hei-de conseguir
descobri-las. E é melhor talvez não as descobrir.
Talvez a luz seja uma nova subjugação.
Quem sabe que novas coisas nos mostrará ela.

Konstandinos Kavafis
- tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Relógio D'Água, 2005

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29/07/06

O PRAZER DE LER - 48


Courbet- la lecture

Livros

O tempo cumpriu as promessas que nos fez
e o dia já não é corrigido pela música:
estas casas não terminam em nenhum jardim,
estão viradas de frente para o inverno, a nossa
direcção. Mas não deixa de ser estranho
reler agora os livros de que gostávamos, os livros
que não podíamos compreender ainda:
enchemos com eles as estantes do futuro,
para o dia em que não poderíamos suportá-los,
de tão próximos. A bela geometria das superfícies
não pode continuar a distrair-nos de tudo
o que nos atormenta: a vida é isto, esta imensa
e inútil espera, e os livros afinal
jamais nos ensinaram outra coisa.

Rui Pires Cabral, Praças e Quintais

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28/07/06

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 19



Pequena elegia chamada domingo

O domingo era uma coisa pequena.
Uma coisa tão pequena
que cabia inteirinha nos teus olhos.
Nas tuas mãos
estavam os montes e os rios
e as nuvens. Mas as rosas,
as rosas estavam na tua boca.

Hoje os montes e os rios
e as nuvens não vêm nas tuas mãos.
(Se ao menos elas viessem
sem montes e sem nuvens
e sem rios ...)
O domingo está apenas nos meus olhos
e é grande.
Os montes estão distantes e ocultam
os rios e as nuvens
e as rosas.

Eugénio de Andrade

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27/07/06

LER OS CLÁSSICOS - 48



Comigo me desavim

Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.
Com dor da gente fugia,

Antes que esta assi crecesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?

Sá de Miranda (s.XVI)

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26/07/06

Beijos a todos os que vêm visitar-me. E obrigada pelo carinho e pela festa!

ESCREVER -35




Escrevemos porque ninguém nos ouve.

Georges Perros

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25/07/06

NOCTURNOS - 10




Noite de luar

Noite do sul da Alemanha, aberta sob a lua cheia
e doce como todo o regresso dos contos.
Da torre as horas caem, pesadas, muitas horas
e nas suas profundezas se precipitam no mar,
—e depois um murmúrio e um grito brado da ronda,
e, por um momento, fica o silêncio vazio;
e então um violino (sabe Deus de onde)
desperta e diz muito lentamente:
uma loura…
Rainer Maria Rilke - O Livro das imagens

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24/07/06

Vemos, ouvimos e lemos/não podemos ignorar...



[...] Seria bom não esquecer, pelo menos, que a primeira coisa que a guerra nos deve provocar é o espanto absoluto. Que ele se manifesta na impotência. Só depois disso é que se pode perguntar: e a seguir? Que faço? Que fazemos? Que exigimos que se faça?

Ver toda esta entrada sobre a guerra no Médio Oriente em
http://valedealmeida.blogspot.com/2006/07/espanto.html

PÉROLAS - 80



Busca

Mas busca em teu espelho o outro,
o outro que vai contigo.

Antonio Machado, in Poesia do século XX
trad. de Jorge de Sena

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23/07/06

CAMONIANAS - 18


vermeer -rapariga com brincos de pérola

Aquele mover de olhos excelente
(elegia)

Aquele mover de olhos excelente,
aquele vivo espírito inflamado
do cristalino rosto transparente;

aquele gesto imoto e repousado,
que, estando na alma propriamente escrito,
não pode ser em verso trasladado;

aquele parecer, que é infinito
para se compreender de engenho humano,
o qual ofendo enquanto tenho dito,

me inflama o coração dum doce engano.
me enleva e engrandece a fantasia,
que não vi maior glória que meu dano.

Oh, bem-aventurado seja o dia
em que tomei tão doce pensamento,
que de todos os outros me desvia!

E bem-aventurado o sofrimento
que soube ser capaz de tanta pena,
vendo que o foi da causa o entendimento!

Faça-me, quem me mata, o mal que ordena;
trate-me com enganos, desamores;
que então me salva, quando me condena.

E se de tão suaves disfavores
penando vive üa alma consumida,
oh! que doce penar! que doces dores!

E se üa condição endurecida
também me nega a morte, por meu dano,
oh! que doce morrer! que doce vida!

E se me mostra um gesto brando e humano,
como quem de meu mal culpada se acha,
oh! que doce mentir! que doce engano!

E se em querer-lhe tanto ponho tacha,
mostrando refrear o pensamento,
oh! que doce fingir! que doce cacha!

Assi que ponho já no sofrimento
a parte principal de minha glória,
tomando por milhor todo o tormento.

Se sinto tanto bem só na memória
de vos ver, linda Dama, vencedora,
que quero eu mais que ser vossa a vitória?

Se tanto vossa vista mais namora
quanto eu sou menos para merecer-vos,
que quero eu mais que ter-vos por senhora?

Se procede este bem de conhecer-vos
e consiste o vencer em ser vencido,
que quero eu mais, Senhora, que querer-vos?

Se em meu proveito faz qualquer partido,
só na vista duns olhos tão serenos,
que quero eu mais ganhar que ser perdido?

Se meus baixos espritos, de pequenos,
ainda não merecem seu tormento,
que quero eu mais, que o mais não seja menos?

A causa, enfim, me esforça o sofrimento,
porque, apesar do mal, que me resiste,
de todos os trabalhos me contento;
que a razão faz a pena alegre ou triste.


Luís de Camões, Rimas

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22/07/06

LEITURAS - 16



"A quem revelar a minha tristeza?..."

[…]
Iona olha para trás, para o passageiro, e move os lábios... Vê-se que quer dizer alguma coisa, mas da sua garganta não sai nada, a não ser um som gutural.
- O que é? - pergunta o militar.
Iona torce a boca num sorriso, força a garganta e rouqueja:
- É que... patrão... tocou-me a mim... o meu filho... morreu-me esta semana.
- Humm!... E de que foi que ele morreu?
Iona volta-se de corpo inteiro para o passageiro e diz:
- E quem sabe lá! Das febres, se calhar... Ficou três dias no hospital e se morreu... É a vontade de Deus.
- Vira, demónio! - ouve-se na escuridão. - Estás cego ou o quê, cachorro velho? Abre os olhos!

- A andar, a andar... - diz o passageiro. - Assim, nem amanhã lá chegamos. Aperta com isso!
O cocheiro torna a esticar o pescoço, a soerguer-se, brandindo o chicote com graça pesada. Depois, volta repetidas vezes a cabeça para o passageiro, mas já este fechara os olhos, e pelo visto, sem disposição parra o ouvir.
[…]

Anton Tchecok, Saudade
in Contos -vol 1º- ed.Relógio d'Água

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21/07/06

DO FALAR POESIA - 52



Amar o poema é ter o poeta
nele transubstanciado. Se ergo a voz
e digo ao silêncio a poesia que vaza
dos versos, eis o poeta ressurreto!
Por isso chamo à luz esses poemas:
para vencer a morte.

Cassiano Ricardo

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20/07/06

DESASSOSSEGOS - 38



Abandonei-me ao vento.Quem sou, pode
explicar-te o vento que me invade.
E já perdi o nome ao som da morte,
ganhei um outro, livre, que me sabe

quando me levantar e o corpo solte
o seu despojo vão. Em toda a parte
o vento há de soprar, onde não cabe
a morte mais. A morte a morte explode.

E os seus fragmentos caem na viração
e o que ela foi na pedra se consome.
Abandonei-me ao vento como um grão.

Sem a opressão dos ganhos, utensílio,
abandonei-me. E assim fiquei conciso,
eterno. Mas o amor guardou meu nome.


Carlos Nejar

foto encontrada em http://www.meublog.net/adelaideamorim/

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19/07/06

OMNIA VINCIT AMOR - 54


escultura de Camille Claudel

Do amor, essa imensa incógnita

O amor, tal como as falésias, é alto
e arde quando nasce: alto mas breve
se por acaso esperas da paixão
a medida do mar. O amor,
com seus vários nomes,
não sabe nada transforma-se
na coisa amada.

Casimiro de Brito

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18/07/06

OS MEUS POETAS - 57-A


sá carneiro - por almada negreiros

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além,
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão...Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! -quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo...e tudo errou...
- Ai a dor de ser quase, dor sem fim...-
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio ,encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
.....................................................
......................................................

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
se ao menos eu permanecesse aquém...

(Paris,13 de Maio de 1913)

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17/07/06

PENSAR - 47




Saramago pessimista em relação ao uso da palavra e imagem

[....]
«Vivemos no paraíso da palavra inútil e da imagem que não serve para nada», num mundo onde «a santa audiência é venerada em todos os altares», desabafou o escritor.
José Saramago falava no seminário «O Júbilo da Aprendizagem: Beatos e Bibliófilos na Pedagogia da Imagem», promovido ela Universidade Internacional Menéndez Pelayo, na localidade de Potes (Cantábria, no Norte de Espanha).
Na primeira jornada do curso, dedicada ao «Legado da Imagem», o Prémio Nobel opinou que «o Mundo está péssimo», ao ponto do ser humano não merecer a vida e ter fracassado como espécie.
Respondendo àqueles que sustentam que «estamos melhor do que antes», Saramago considera que eles confundem o ter com o ser e se esquecem que talvez tenha melhorado uma pequena minoria entre mais de seis milhões de pessoas.
O escritor português criticou o uso actual das imagens e declarou que agora se vive «numa espécie de culto à imagem como uma valor em si mesmo» e a televisão faz uma utilização «totalmente gratuita» dessas imagens, atirando-as, uma atrás da outra, «à cara» de quem olha para o ecrã, sem outro resultado que o aturdimento.
Saramago chamou a atenção para a «insensibilidade» patente quando se transmite um programa sobre a vida dos chamados «famosos» e depois, as imagens de uma bomba no Iraque ou de uma epidemia de Sida em África.
«Isto significa que tanta importância tem uma coisa como a outra», comentou o escritor, adiantando que, em nome das «santas audiências», se têm cometido muitos crimes contra a razão, contra a sensibilidade e contra o bom gosto, entre aplausos das próprias vítimas.
«O sistema transformou as vítimas em cúmplices e isso acontece todos os dias», sublinhou ele, considerando que os cidadãos deveriam exigir ser respeitados.
No seu entender, também a palavra é alvo de manipulação, «especialmente no caso dos políticos», uma vez que já se sabe ou se suspeita que o que «tem a palavra na boca» está a dar-lhe um sentido contrário ao que ela tem.
Contudo, segundo Saramago, há uma zona onde a imagem e a palavra se transformam em aliados e essa é a área do conhecimento, que é também uma palavra «mas está a dizer algo».
Ao iniciar o seminário, o autor, entre outros livros, do «Memorial do Convento», defendeu que «o importante na Arte é o que se recupera». Opinou que o audiovisual não é uma «invenção moderna», mas sim algo tão velho como o mundo ou, pelo menos, como o mundo cristão.
Saramago recordou que, há algum tempo, lhe pediram que enumerasse os seus objectivos para o novo milénio e que, entre eles, incluiu o de que «todos nos transformemos em filósofos», porque filosofar significa pensar, reflectir e duvidar - palavras que talvez pertençam a categoria das caducas, daquelas que já não se usam.

in Diário Digital / Lusa
10-07-2006

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16/07/06

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 18



A água fria murmura através dos ramos
das macieiras; toda a terra está sob a sombra
das roseiras; e das folhagens a estremecer
escorre o sono


Safo, in "Poesia Grega de Álcman a Teócrito"
-tradução de Frederico Lourenço - ed.Cotovia,2006

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15/07/06

LEITURAS - 15




Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira.Certa manhã, ao deixar o metrô por engano numa estação azul igual à dela, com um nome semelhante à estação da casa dela, telefonei da rua e disse: aí estou chegando quase.Desconfiei na mesma hora que tinha falado besteira, porque a professora me pediu para repetir a sentença.Aí estou chegando quase...havia provavelmamente algum problema com a palavra quase.Só que, em vez de apontar o erro,ela me fez repeti-lo, repeti-lo, depois caíu numa gargalhada que me levou a bater o fone. Ao me ver à sua porta teve outro acesso e quanto mais prendia o riso à boca, mais se sacudia de rir com o corpo inteiro.Disse enfim ter entendido que eu chegaria pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha, depois um joelho, e a piada nem tinha essa graça toda. Tanto é verdade que em seguida KrisKa ficou meio triste e, sem saber pedir desculpas, roçou com a ponta dos dedos meus lábios trémulos. Hoje porém posso dizer que falo húngaro com perfeição, ou quase. Quando à noite começo a murmurar sózinho, a suspeita de um ligeiríssimo sotaque aqui e ali muito me aflige. Nos ambientes que frequento, onde discorro em voz alta sobre temas nacionais, emprego verbos raros e corrijo pessoas cultas, um súbito acento estranho seria desastroso. Para tirar a cisma, só posso recorrer a Kriska, que tão pouco é muito confiável; a fim de me segurar ali comendo em sua mão, como talvez deseje, sempre me negará a última migalha. Ainda assim, volta e meia lhe pergunto em segredo: perdi o sotaque? Tinhosa ,ela responde: pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha...E morre de rir, depois se arrepende, passa as mãos no meu pescoço e por aí se vai.

Chico Buarque - Budapeste

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14/07/06

LIBERTÉ - ÉGALITÉ - FRATERNITÉ

14 de julho de 1789


delacroix:la liberté guide le peuple

liberdade *

Nos meus cadernos de escola
no banco dela e nas árvores
e na areia e na neve
escrevo o teu nome

Em todas as folhas lidas
nas folhas todas em branco
pedra sangue papel cinza
escrevo o teu nome

Nas imagens todas de ouro
e nas armas dos guerreiros
nas coroas dos monarcas
escrevo o teu nome

Nas selvas e nos desertos
nos ninhos e nas giestas
no eco da minha infância
escrevo o teu nome

Nas maravilhas das noites
no pão branco das manhãs
nas estações namoradas
escrevo o teu nome

Nos meus farrapos de azul
no charco sol bolorento
no lago da lua viva
escrevo o teu nome

Nos campos e no horizonte
nas asas dos passarinhos
e no moinho das sombras
escrevo o teu nome

No bafejar das auroras
no oceano dos navios
e na montanha demente
escrevo o teu nome

Na espuma fina das nuvens
no suor do temporal
na chuva espessa apagada
escrevo o teu nome

Nas formas mais cintilantes
nos sinos todos das cores
na verdade do que é físico
escrevo o teu nome

Nos caminhos despertados
nas estradas desdobradas
nas praças que se transbordam
escrevo o teu nome

No candeeiro que se acende
no candeeiro que se apaga
nas minhas casas bem juntas
escrevo o teu nome

No fruto cortado em dois
do meu espelho e do meu quarto
na cama concha vazia
escrevo o teu nome

No meu cão guloso e terno
nas suas orelhas tesas
na sua pata desastrada
escrevo o teu nome

No trampolim desta porta
nos objectos familiares
na onda do lume bento
escrevo o teu nome

Na carne toda rendida
na fronte dos meus amigos
em cada mão que se estende
escrevo o teu nome

Na vidraça das surpresas
nos lábios todos atentos
muito acima do silêncio
escrevo o teu nome

Nos refúgios destruídos
nos meus faróis arruinados
nas paredes do meu tédio
escrevo o teu nome

Na ausência sem desejos
na desnuda solidão
nos degraus mesmos da morte
escrevo o teu nome

Na saúde rediviva
aos riscos desaparecidos
no esperar sem saudade
escrevo o teu nome

Pelo poder duma palavra
recomeço a minha vida
nasci para conhecer-te
nomear-te

liberdade.

* e também Igualdade e Fraternidade - sempre, como um desejo


Paul Eluard
trad.de Jorge de Sena

13/07/06

PÉROLAS - 79



Canção Malgaxe

Subiu a rapariga para cima da amoreira,
e ao cimo do limoeiro subiu o homem também.
Uma aranha os enlaçou, e tudo aquilo que é belo
não deixa que se separem.

canção tradicional de Madagáscar

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12/07/06

NOCTURNOS - 9



Desassossego

Ó noite onde as estrelas mentem luz, ó noite, única coisa do tamanho do Universo, torna-me, corpo e alma, parte do teu corpo, que eu me perca em ser mera treva e me torne noite também, sem sonhos que sejam estrelas em mim, nem sol esperado que ilumine o futuro.

Bernardo Soares.Fernando Pessoa-Livro do Desassossego

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11/07/06

ESCREVER -34



Escrever

"-Isto [escrever o livro] é um trabalho ingrato.- Razão pela qual, como vedes, tenho eu construído a obra principal e as suas partes acidentais com tantas intersecções, e compliquei e enredei de tal modo os movimentos digressivo e progressivo, com umas engrenagens dentro das outras, para que a máquina toda, em geral, se mantenha a funcionar;-e, o que é mais, há-de continuar a funcionar por mais uns quarenta anos, se a fonte da saúde me abençoar durante todo esse tempo com vida e boa disposição."

,“A Vida e Opiniões de Tristram Shandy",
Parte primeira,vol.I, cap.XXII- Trad. de Manuel Portela

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10/07/06

OS MEUS POETAS - 56


[cesare pavese]


Trabalhar cansa

Atravessar uma rua para fugir de casa
só um rapaz o faz, mas este homem que vagueia
todo o dia pelas ruas já não é um rapaz
e não foge de casa.

Há no Verão
tardes em que até as praças ficam vazias, estendidas
ao sol que vai pôr-se, e este homem que chega
por uma avenida de árvores inúteis pára.
Vale a pena ser-se só, para se estar cada vez mais sozinho?
Percorrê-las apenas - as praças e as ruas
estão vazias. Havia que parar uma mulher
e falar-lhe e convencê-la a viverem juntos.
Doutro modo fala-se sozinho.
É por isso que às vezes
vem abordar-nos o bêbado nocturno
e conta os projectos de toda a vida.

Não é certamente ficando à espera na praça deserta
que se encontra alguém, mas quem anda pelas ruas
de vez em quando pára. Se fossem dois,
mesmo a andar pelas ruas, a casa seria
onde está essa mulher e valeria a pena.
De noite a praça volta a ficar deserta
e este homem que passa não vê as casas
entre as luzes inúteis, já não levanta os olhos:
sente apenas o empedrado, que outros homens fizeram
com mãos calejadas, como são as suas.

Não é justo ficar na praça deserta.
Anda certamente na rua aquela mulher
que, rogada, havia de querer dar uma mão à casa.


Cesare Pavese (1908-1950)-Trabalhar Cansa - ed.Cotovia
Tradução de Carlos Leite.

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09/07/06

DO FALAR POESIA - 51


foto enviada por Rilke a Marina Tsvétaiëva


Caro Rainer:

Goethe disse não sei onde que não se pode criar nada de grande numa língua estrangeira – coisa que sempre me pareceu soar a falso.(Goethe no seu todo soa sempre a verdade, ele é grande enquanto tal, por isso estou a ser injusta neste momento para com ele)
Escrever poemas é traduzir da língua materna para uma outra, e pouco importa que ela seja alemã ou francesa. Nenhuma língua é uma língua materna. Um poeta pode escrever em francês, mas não ser um poeta francês. É ridículo.
Eu não sou um poeta russo e para mim é sempre estranho ser encarada como tal. A pessoa torna-se poeta (se é que alguém pode tornar-se poeta, não o sendo à partida!), não por ser francês, russo, etc.,mas por ser simplesmente poeta.(…)

Carta de Marina Tsvétaiëva a Rainer Maria Rilke, que lhe enviara o seu livro de poemas,escrito em francês, Vergéis.(data da carta:6 de Julho de 1926)


In Rilke/Pasternak/ Tsvétaiëva –Correspondência a Três-Verão de 1926-Assírio e Alvim, 2006

[recomendo vivamente este livro]

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08/07/06

POETAS AMIGOS - 38


Esboço em giz
era deus, calado
ausente na fundura dos lamentos
nos livros espalhados pelo quarto
na porta entreabrindo iluminuras
[era eu, menino
nas sobras de março
tardias e desfiguradas
por este abril minucioso
que agora começa
a me mastigar]

Douglas Dias
http://vomitandoimagens.blogspot.com/

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07/07/06

LER CLÁSSICOS - 47



Que és um dia de verão não sei se diga.
És mais suave e tens mais formosura:
vento agreste botões frágeis fustiga
em Maio e um verão a prazo dura.
O olho do céu vezes sem conta abrasa,
outras a tez dourada lhe escurece,
todo o belo do belo se desfasa,
por caso ou pelo curso que obedece
da Natura; mas teu terno verão
nem murcha, nem te tira teus pertences,
nem a morte te torna assombração
quando o tempo em eternas linhas vences:
enquanto alguém respire ou possa ver
e viva isto e a ti faça viver.

Shakespeare -Soneto XVII

Trad. de Vasco da Graça Moura

06/07/06

DE AMICITIA - 42




Os amigos regressam depois de muitos anos
Como se houvesse ainda uma árvore e a sua sombra
Como se nenhuma página se tivesse escrito
Desde o tempo em que os cadernos
Só traziam as páginas em branco
Para que a vida toda pudesse ainda acontecer

Os amigos regressam como se ateássemos
De novo as fogueiras antigas
Como se uma nuvem se despenhasse
Na linha de água dos açudes
À procura de si mesma
À procura das primeiras chuvas
Dos primeiros anos
Das primeiras palavras dos primeiros livros

José Carlos Barros - in http://casa-de-cacela.blogspot.com/

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05/07/06

LEITURAS - 14


foto de maria gomes


«Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o sginificado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso também é velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer... Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreeende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal... e isso é precisamente a velhice.»

Sándor Márai, in 'As Velas Ardem Até ao Fim'
Via O Citador

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04/07/06

OMNIA VINCIT AMOR - 53




Tudo o que escrevi acerca de nós é mentira
não foi o que aconteceu mas o que eu gostava que tivesse acontecido
eram as minhas nostalgias pousadas em ramos inacessíveis
era a sede vinda do poço dos meus sonhos
eram imagens que eu traçava na claridade

Tudo o que escrevi acerca de nós é verdade
a tua beleza
isto é uma cesta de frutos ou um festim em redor de uma mesa campesina
a falta que tu me fazes
isto é a minha última luz no último recanto da cidade
o meu ciúme
isto é a minha corrida de olhos vendados à noite por entre os comboios
a minha felicidade
isto é o rio derribando os seus diques à luz do sol
tudo o que escrevi acerca de nós é mentira
é tudo verdade o que escrevi acerca de nós.

Nâzim Hikmet , poeta turco

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03/07/06

O PRAZER DE LER - 47




Não existem livros morais ou imorais. Os livros são mal ou bem escritos. É tudo. (...)
Um artista não tem simpatias éticas. Uma simpatia ética num artista é um maneirismo de estilo imperdoável. (...)Toda a arte é perfeitamente inútil.
Oscar Wilde, in O Retrato de Dorian Gray
trad. de Margarida Vale de Gato


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02/07/06

NOCTURNOS - 8



SONHOS

Certas noites sigo uma luz amarela
até uma porta azul, onde se lê: Sonho.
A porta não é aberta por minha mão
nem sou convidado por uma mulher
pra comprar sonhos, e mesmo assim
sempre eles foram pagos por mim.
À noite não fiquei nada a dever.

Pierre Kemp (1886-1967) Uma migalha na Saia do Universo-antologia

encontrado em aguarelas de turner -http://aguarelast.blogspot.com/

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01/07/06

PÉROLAS - 78


foto de amélia pais

Oferenda

Ofereço-te um perfume? Ofereço-te ao perfume?
No fim de contas, tu — perfumas o perfume.

Anónimo- in Antologia Grega
Trad.de David Mourão-Ferreira

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DA EDUCAÇÃO - 17



A escola não deve ser fonte de depressão. A escola precisa de riso e de entusiasmo, de alegria e de animação; precisa que se goste dela. A fruição da vida não pode ficar à porta da escola. Recuso-me a participar neste drama mesmo tenha de passar por alienado!

Miguel Pinto in http://outroarcanjo.blogspot.com/

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