13/01/09

ESCREVER - 76



A forma da realidade

(excertos)

Chega uma altura em que olhamos para todos os inícios que nunca tiveram continuação, contos inacabados, poemas compostos de medonhos versos, fragmentos incompletos de coisa nenhuma, escolhas de vida interrompidas sem razão.
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E assim, chegamos à idade plena da Web 2.0. Aqui estamos, publicando fragmentos diarísticos, pedaços de criatividade mais ou menos sofrível, pensamentos para o mundo ler — mesmo que não queira. A internet, esse círculo dantesco de despojados do conhecimento real, deixou que blogues, fotoblogues, fóruns tomassem conta da vida de muitos que deveriam confiar os seus escritos ao morno conforto da gaveta. Estamos no século XXI e podemos usufruir, quase em tempo real, das confissões de milhões de aspirantes a Gide e a Kafka. George Orwell, blogger involuntário, daria a sua permissão para o serviço que estão a prestar aos seus diários? A luta é constante: quem publica na blogosfera pretende o reconhecimento da importância desta actividade, e converter escritores mortos aos blogues não é um pecado que não possa ser perdoado.
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Certamente que a rapidez e a facilidade que a escrita bloguística permite são fortes incentivos ao facilitismo. Mas a questão é esta: que semelhanças existem entre o acto de manter um blogue e escrever um diário privado? À partida, lamento, poucas, apesar da origem da palavra blogue (de weblog, diário da web).
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O simulacro de real, que no fundo a internet é, alberga outra simulações: de literatura, sobretudo de vida. O que leva alguém a partilhar com o mundo inteiro o seu quotidiano, quando o poderia esconder num diário secreto? As motivações contam pouco, mas teremos sempre de conviver com a diferença, em termos de forma, entre um blogue confessional e um diário. O cadeado e a chave que as crianças usam são precisamente os objectos que o blogger dispensa ao clicar no “publish post”
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A realidade é, por natureza, fragmentada. A literatura é essencial para o ser humano porque sistematiza a realidade, oferece-lhe um fio condutor, uma continuidade, um sentido. Ao contrário da vida, que muitas vezes parece não ter uma finalidade, um romance caminha para um fim, e o Deus que o escreve (o autor) não é cruel como aquele que escreve o Universo — as personagens, quando nascem, sabem exactamente como irão acabar; uma obra de ficção é uma parcela de realidade atemporal, sem o peso da existência, e mesmo assim é o que mais se aproxima de uma explicação para o mundo (esqueçamos a racionalidade absoluta da filosofia). A consistência de um texto literário, a obrigatória unidade de tempo e espaço (Aristóteles ainda tem razão), é subvertida pela escrita diarística. O diário e o blogue imitam a forma da vida e, por isso, são menos perfeitos que um conto ou um romance. Até quando irá resistir essa forma arcaica de transcender a realidade, a literatura? Sejamos optimistas: algum dia se publicará em blogues uma Odisseia que sublime o género humano. Assim acredito

Sérgio Lavos

em auto-retrato -http://retrato-auto.blogspot.com/) e em http://revistamalagueta.com/

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