07/04/12

OS MEUS POETAS - 247

a boneca
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[ A verdade ]


Je ne crois que les histoires dont les
témoins se feraient égorger!
Pensées, Pascal
Eu tinha chegado tarde à escola. O mestre quis, por força, saber porquê. E eu tive que dizer:
 Mestre! quando saí de casa tomei um carro para vir mais depressa, mas, por infelicidade, diante do carro caiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo.

 O mestre zangou-se comigo:
 Não minta! diga a verdade!

E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... minha mãe tinha um irmão no estrangeiro e, por infelicidade, morreu ontem de repente e nós ficámos de luto carregado. 

O mestre ainda se zangou mais comigo:
 Não minta! diga a ver­dade!!


E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... estava a pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos anos, sem escrever. Ora isto ainda é pior do que se ele tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de luto carregado ou não.


Então o mestre perdeu a cabeça comigo:
Não minta, ouviu? diga a verdade, já lho disse!

Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me pas­sou pela cabeça que acreditei que o mestre queria efectivamente que lhe dissesse a verdade. E, criança como eu era, pus todo o peso do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração à solta con­fessei a verdade:

 Mestre! antes de chegar à Escola há uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de cor-de­-rosa! Mestre! a boneca estava vestida de cor-de-rosa! A boneca tinha a pele de cera. Como as meninas! A boneca tinha tranças caídas. Como as meninas! A boneca tinha os dedos finos. Como as meninas!
Mestre! A boneca tinha os dedos finos...

(Escrito em 1921.)

José de Almada Negreiros

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