DESASSOSSEGOS - 116
[do Livro do Desassossego]
Contava as mortes que tivera na família - não ouvi bem quais eram as mágoas que elas lhe haviam causado, e, de repente, sem aviso ao universo, sem poder reparar no que dizia ou repararmos nós os que o escutávamos, remata a erguer a chávena do café já sem fumo: « Assim é a vida, mas eu não concordo.» Foi esta a frase e eu só queria, ao relembrá - la, a glória de a poder ter eu inventado. Os blasfemadores todos ficaram pobres por essa frase ter sido dita. Ela é a expressão clássica e pura de que eles são os românticos e os contorcionistas.
Acordei com uma violência enorme, e registei a lápis súbito, logo, a frase dita, para que me não esquecesse pela sua mesma simplicidade. «Assim é a vida, mas eu não concordo.» É a luta interior dum homem da rua nas suas relações com a Natureza. A sua expressão exacta, mera frase casual e alheia de um homem que não sei quem é, nem sabe de si nem mais que eu sei dele.
Toda a arte, toda a religião, tudo quanto nos intriga do existir, do (…) * e de nós mesmo vive.
Há momentos de génio, momentos que são gente superior, e aparecem de repente à janela de certos seres, ao acaso, porque é a janela mais próxima. Tal homem do povo, um carroceiro às rédeas, um leiteiro à conversa com a criada gorda, um moço de fretes encostado por fora de um candeeiro, têm destas frases…Só agora me lembro que ouvi outra, há tempos, de uma mulher que não vi, mas cuja voz relembro, falava com a voz de outra mulher a um portal de casa por onde passei: - «ora ele morreu lá disso. Ele morreu mas foi de ter que morrer.»
* palavra ilegível
Fernando Pessoa/Bernardo Soares, Livro do Desassossego
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