LEITURAS -145
Livros
O pombo Benjamim enfiou a cabeça dentro de uma poça de água. Quando a levantou, e depois de se abanar energicamente, estava defronte a uma montra com livros. É preciso ter uma grande lata para escrever um livro, pensou. Escrever pressupõe o desejo de ser lido. Só a cegueira da vaidade permite julgar digno de leitura aquilo que se escreve. O mundo está repleto de gente que escreve. Toneladas de letras mancham toneladas de folhas que implicam o abatimento de toneladas de árvores. Apenas uma razão muito forte poderia justificar um crime destes. Poderia, houvesse essa razão. Olha-se para o papel publicado e ficamos sem dúvidas: vaidade, desmedida vaidade, criminosa vaidade, insuportável vaidade. Houve um tempo em que as pessoas faziam de tudo para conquistarem um coração. Hoje fazem de tudo para publicarem um livro. E de tudo fazem para o verem escrito, sem qualquer motivação que não seja a vaidade de um nome estampado numa capa, na lombada, nas badanas, no cólofon de um livro. Já tudo foi escrito. Que veleidade poderá ainda convencer alguém de que tem algo a dizer, de que tem algo tão importante a dizer que não possa ser dito de outra forma senão escrevendo um livro, publicando um livro, cometendo mais um irremediável crime ecológico? É tudo, pura e simplesmente, uma questão de vaidade. Já ninguém pode acreditar que os livros salvam o mundo. Talvez pretendam salvar os homens do mundo, ao mesmo tempo que competem para a destruição desse mesmo mundo. E eu tenho visto o mundo, continuou Benjamim de si para si. Os livros são apenas mais uma cápsula da morte dos homens, a ilusão de quem os lê, um crime ecológico. São a receita que os homens prescreveram a si próprios para poderem continuar iludidos. Imprime-se qualquer coisa hoje em dia. Época idiota. Qualquer coisa que o homem faça, mete-o num livro para explicar aos outros como se faz. Qualquer coisa que sinta, mete-o num livro para que os outros o sintam. Qualquer coisa que pense e, sobretudo, qualquer coisa que não pense, pois os livros estão repletos de não-pensamentos, de uma ausência de razões e de reflexão, estão ausentes de ócio, de tempo. O tempo que os homens deviam ocupar a pensar num mundo melhor, ocupam-no a escreverem livros. Livros de todos os feitios e de todas as cores, com capas rijas, moles, impermeáveis. Livros que são vendidos como alpista. Livros. Árvores mortas.
Henrique Fialho
Henrique Fialho
- episódio de uma novela intitulada "A Cidade a Tossir" que pode ser encontrado em Em antologia do esquecimento - http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/
Etiquetas: leituras, o prazer de ler
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