03/12/07

LEITURAS - 58

Incompreensão



De todas as mudanças de língua que tem de enfrentar o viajante em terras longínquas, nenhuma iguala a que o espera na cidade de Hipácia, porque não diz respeito às palavras mas sim às coisas. Entrei em Hipácia uma manhã, um jardim de magnólias reflectia-se em lagunas azuis, eu andava por entre os canteiros seguro de descobrir belas e jovens damas a tomar banho: mas no fundo das águas os caranguejos mordiam os olhos das suicidas de pedra atada ao pescoço e cabelos verdes de algas.Senti-me defraudado e pretendi pedir justiça ao sultão. Subi as escadarias de pórfiro do palácio de cúpulas mais altas, atravessei seis pátios de azulejos com repuxos. A sala no meio estava barrada por grades: os forçados com negras correntes amarradas aos pés içavam pedras de basalto de uma mina que se abria debaixo da terra.Só me restava interrogar os filósofos. Entrei na grande biblioteca, perdi-me entre as estantes que vergavam sob o peso das encadernações de pergaminho, segui a ordem alfabética de alfabetos desaparecidos, subi e desci corredores, escadas e pontes. No mais remoto gabinete dos papiros, numa nuvem de fumo, apareceram-me os olhos apatetados de um adolescente deitado numa esteira, que não tirava os lábios de um cachimbo de ópio.— Onde está o sábio? — O fumador indicou-me a rua pela janela. Era um jardim com jogos infantis: os jogos de paulitos, os baloiços, o escorrega. O filósofo estava sentado na relva. Disse: — Os sinais formam uma língua, mas não a que julgas conhecer. — Compreendi que devia libertar-me das imagens que até aqui me haviam anunciado as coisas que procurava: só então conseguiria entender a linguagem de Hipácia.Agora basta que oiça relinchar os cavalos e zunir os chicotes e logo me assalta uma trepidação amorosa: em Hipácia tive de entrar nas cavalariças e nas oficinas dos ferradores para ver as belíssimas mulheres que montam nas selas de coxas nuas e polainas nas pernas, e que mal se aproxima um jovem estrangeiro o deitam sobre montes de feno ou de serradura e o apertam com os rijos mamilos.E quando a minha alma não pede outro alimento e estímulo que não seja a música, sei que tenho de procurá-la nos cemitérios: os tocadores escondem-se nos túmulos; de uma cova para outra correspondem-se trinados de flautas e acordes de harpas.Decerto mesmo em Hipácia também chegará o dia em que o meu único desejo será partir. Sei que não deverei descer ao porto mas sim subir ao pináculo mais alto da fortaleza e esperar que passe um navio lá por cima. Mas passará alguma vez? Não há linguagem sem engano.

Italo Calvino in As Cidades Invisíveis
tradução de José Colaço Barreiros - ed.Teorema

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