LER OS CLÁSSICOS - 65
paul gauguin-petit berger de Provence
Frei Bartolomeu dos Mártires e o Pastorinho
Com a entrada do ano novo determinou começar a visitar o Arcebispado. Diziam-lhe os cónegos e desembargadores que era ó tempo do Inverno mui áspero naquelas partes, de muitas neves e frios intoleráveis; que lhe poderiam fazer dano irreparável na saúde. A isto respondia que o bom pastor não deixava de estar com suas ovelhas por medo das chuvas, nem frios, nem calmas, nem tempestades; porque então têm elas mais necessidade de sua companhia.
(...)
Era fim de Janeiro, tempo ventoso e frigidíssimo. Deixou o abrigo e chaminés dos seus paços, foi-se experimentar os maus caminhos e piores gasalhados das aldeias... Mas queixavam-se os seus que não podiam aturar a continuação do trabalho, dos caminhos, das invernadas; ele só, com trabalhar mais que todos; sofria desassombradamente todas as incomodidades; e nos caminhos, por fragosos e ásperos que fossem, era o primeiro que os acometia, pondo-se na dianteira.
Passavam um dia de um lugar para outro. Salteou-os uma chuva fria e importuna, que os não largou na maior parte da jornada; e corria um vento agudo e desabrigado, que os congelava. Tinha-se adiantado o Arcebispo, segundo seu costume, que era caminhar quase sempre só pera se ocupar com mais liberdade em suas contemplações; e ia fazendo matéria de tudo quanto via no campo e na serra, para louvar a Deus.
Ofereceu-se-lhe à vista, não longe do caminho, posto sobre um penedo alto e descoberto ao vento e à chuva, um menino pobre e bem mal reparado de roupa, que vigiava umas ovelhinhas que ao longe andavam pastando. Notou o Arcebispo a estância, o tempo, a idade, o vestido, a paciência do pobrezinho: e viu juntamente que ao pé do penedo se abria uma lapa, que podia ser bastante abrigo para o tempo. Movido de piedade, parou, chamou-o, e disse-lhe que se descesse abaixo pera a lapa e fugisse da chuva, pois não tinha roupa bastante pera a esperar.
— Isso não! — respondeu o pastorinho, — que, em deixando de estar alerta e com o olho aberto, vem logo o lobo e leva-me a ovelha, ou vem a raposa e mama-me o cordeiro!
— E que vai nisso? — disse o Arcebispo.
— A mi me vai muito — tornou ele, — que tenho pai em casa, que pelejará comigo, e tão bom dia se não forem mais que brados. Eu vigio o gado, ele me vigia a mim: mais vale sofrer a chuva...
Não quis o Arcebispo dar mais passo. Esperou que chegassem os da sua companhia, contou-lhes o que se passara com o menino e acrecentou:
— Este esfarrapadinho inocente ensina a Frei Bartolomeu a ser Arcebispo! Este me avisa que não deixe de acudir e visitar minhas ovelhas, por mais tempestades que fulmine o céu; que, se este, com tão pouco remédio pera as passar, todavia não foge delas, respeitando o mandado do pai mais que o descanso, que razão poderei eu dar, se, por medo de adoecer ou padecer um pouco de frio, desemparar as ovelhas cujo cuidado e vigia Cristo fiou de mim, quando me fez pastor delas?
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Era fim de Janeiro, tempo ventoso e frigidíssimo. Deixou o abrigo e chaminés dos seus paços, foi-se experimentar os maus caminhos e piores gasalhados das aldeias... Mas queixavam-se os seus que não podiam aturar a continuação do trabalho, dos caminhos, das invernadas; ele só, com trabalhar mais que todos; sofria desassombradamente todas as incomodidades; e nos caminhos, por fragosos e ásperos que fossem, era o primeiro que os acometia, pondo-se na dianteira.
Passavam um dia de um lugar para outro. Salteou-os uma chuva fria e importuna, que os não largou na maior parte da jornada; e corria um vento agudo e desabrigado, que os congelava. Tinha-se adiantado o Arcebispo, segundo seu costume, que era caminhar quase sempre só pera se ocupar com mais liberdade em suas contemplações; e ia fazendo matéria de tudo quanto via no campo e na serra, para louvar a Deus.
Ofereceu-se-lhe à vista, não longe do caminho, posto sobre um penedo alto e descoberto ao vento e à chuva, um menino pobre e bem mal reparado de roupa, que vigiava umas ovelhinhas que ao longe andavam pastando. Notou o Arcebispo a estância, o tempo, a idade, o vestido, a paciência do pobrezinho: e viu juntamente que ao pé do penedo se abria uma lapa, que podia ser bastante abrigo para o tempo. Movido de piedade, parou, chamou-o, e disse-lhe que se descesse abaixo pera a lapa e fugisse da chuva, pois não tinha roupa bastante pera a esperar.
— Isso não! — respondeu o pastorinho, — que, em deixando de estar alerta e com o olho aberto, vem logo o lobo e leva-me a ovelha, ou vem a raposa e mama-me o cordeiro!
— E que vai nisso? — disse o Arcebispo.
— A mi me vai muito — tornou ele, — que tenho pai em casa, que pelejará comigo, e tão bom dia se não forem mais que brados. Eu vigio o gado, ele me vigia a mim: mais vale sofrer a chuva...
Não quis o Arcebispo dar mais passo. Esperou que chegassem os da sua companhia, contou-lhes o que se passara com o menino e acrecentou:
— Este esfarrapadinho inocente ensina a Frei Bartolomeu a ser Arcebispo! Este me avisa que não deixe de acudir e visitar minhas ovelhas, por mais tempestades que fulmine o céu; que, se este, com tão pouco remédio pera as passar, todavia não foge delas, respeitando o mandado do pai mais que o descanso, que razão poderei eu dar, se, por medo de adoecer ou padecer um pouco de frio, desemparar as ovelhas cujo cuidado e vigia Cristo fiou de mim, quando me fez pastor delas?
Manuel de Sousa Coutinho, Frei Luís de Sousa* -Vida e Obra de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Liv. I, cap. XIV
* Frei Luís de Sousa (1556-1632), nome religioso de Manuel de Sousa Coutinho, nascido em Santarém e falecido em Lisboa. Era um fidalgo - cavaleiro da Ordem Militar de Malta. Como personagem dá o nome à peça Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett.
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