LER OS CLÁSSICOS - 64
Sobre o amor
Não somos firmes no amor, porque em nada podemos ser constantes: continuamente nos vai mudando o tempo; uma hora de mais é mais em nós uma mudança. A cada passo que damos no decurso da vida, imos nascendo de novo, porque a cada passo imos deixando o que fomos, e começamos a ser outros: cada dia nascemos porque cada dia mudamos, e quanto mais nascemos desta sorte, tanto mais nos fica perto o fim, que nos espera. A inconstância que é um acto da alma, ou da vontade, não se faz sem movimento; a natureza não se conserva, e dura, senão porque se muda, e move. O mundo teve o seu princípio no primeiro impulso, que lhe deu o supremo Artífice; a mesma luz, que é uma bela imagem da Omnipotência, toda se compõe de uma matéria trémula, inconstante, e vária. Tudo vive enfim do movimento; a falta de mudança é o mesmo que falta de vida, e de existência, e assim a firmeza é como um atributo essencial da morte.
Se em nada pois há permanência, e se o estado da firmeza é contrário às leis da vida, como pode ser que haja amor constante? Isso é um impossível desejado. Não há nada isento das revoluções, e alterações do mundo; tudo nele se muda, porque tudo se move; por isso a firmeza é violenta, ao mesmo tempo que a inconstância é natural. Para sermos firmes, é-nos necessário força, porque temos que vencer a economia, e ordem, que não permite repouso em cousa alguma; para mudarmos a mesma natureza nos inclina, e guia; semelhante a qualquer peso, que sobe com violência, e desce por si mesmo. O movimento, e a mudança, de que depende o ser das cousas, também é princípio do fim delas; sem mudança, e movimento, nem se pode existir, nem acabar; a mesma origem da vida também é da morte a causa; por isso é tão certa a morte, e tão curta a vida; porque um, e outro extremo, nascem do mesmo modo, e se criam no mesmo berço.
O amor é um influxo da beleza, por isso esta raras vezes anda solitária e quási sempre a acompanha o amor: agradável mas louca companhia; apetecida, mas traidora felicidade! (...)
Matias Aires - Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, 1752
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