29/07/05

LER OS CLÁSSICOS - 14

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foto de João Coutinho



A SAUDADE


É a saudade uma mimosa paixão da alma, e por isso tão subtil, que equivocamente se experimenta, deixando-nos indistinta a dor da satisfação. É um mal, de que se gosta, e um bem, que se padece: quando fenece, troca-se a outro maior contentamento, mas não que formalmente se extinga: porque se sem melhoria se acaba a sau­dade, é certo que o amor e o desejo se acabarão primeiro. Não é assim com a pena; porque quanto é maior a pena, é maior a saudade, e nunca se passa ao maior mal, antes rompe pelos males; conforme sucede aos rios impetuosos, conservarem o sabor de suas águas, muito espaço de misturar-se com as ondas do mar, mais opulento. Pelo que diremos que ela é um suave fumo do fogo do amor, e que do próprio modo que a lenha odorífera lança um vapor leve, alvo e cheiroso, assim a saudade, modesta e regulada, dá indícios de um amor fino, casto e puro. Não necessita de larga ausência; qualquer desvio lhe basta, para que se conheça. Assim prova ser parte do natural apetite da união de todas as coisas amáveis e semelhantes; ou ser aquilo falta, que da divisão dessas tais coisas procede. Compete por esta causa aos racionais, pela mais nobre porção que há em nós; e é legítimo argumento da imortalidade de nosso espírito, por aquela muda ilação, que sem­pre nos está fazendo interiormente, de que fora de nós há outra coisa melhor que nós mesmos, com que nos desejamos unir; sendo esta tal a mais subida das saudades humanas, como se dissésse­mos: um desejo vivo, uma reminiscência forçosa, com que apete­cemos espiritualmente o que não havemos visto jamais, nem ainda ouvido, e temporalmente, o que está de nós remoto e incerto; mas um e outro fim, sempre debaixo das premissas de bom e deleitá­vel. Esta é em meu juizo a teórica das saudades, pelos modos que, sem as conhecer, as padecemos, agora humana, agora divinamente.


D.Francisco Manuel de Melo (s.XVII)
cit.por Eduardo Lourenço, in Portugal como destino / Mitologia da Saudade,Gradiva,1999

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