LER OS CLÁSSICOS - 14
foto de João Coutinho
A SAUDADE
É a saudade uma mimosa paixão da alma, e por isso tão subtil, que equivocamente se experimenta, deixando-nos indistinta a dor da satisfação. É um mal, de que se gosta, e um bem, que se padece: quando fenece, troca-se a outro maior contentamento, mas não que formalmente se extinga: porque se sem melhoria se acaba a saudade, é certo que o amor e o desejo se acabarão primeiro. Não é assim com a pena; porque quanto é maior a pena, é maior a saudade, e nunca se passa ao maior mal, antes rompe pelos males; conforme sucede aos rios impetuosos, conservarem o sabor de suas águas, muito espaço de misturar-se com as ondas do mar, mais opulento. Pelo que diremos que ela é um suave fumo do fogo do amor, e que do próprio modo que a lenha odorífera lança um vapor leve, alvo e cheiroso, assim a saudade, modesta e regulada, dá indícios de um amor fino, casto e puro. Não necessita de larga ausência; qualquer desvio lhe basta, para que se conheça. Assim prova ser parte do natural apetite da união de todas as coisas amáveis e semelhantes; ou ser aquilo falta, que da divisão dessas tais coisas procede. Compete por esta causa aos racionais, pela mais nobre porção que há em nós; e é legítimo argumento da imortalidade de nosso espírito, por aquela muda ilação, que sempre nos está fazendo interiormente, de que fora de nós há outra coisa melhor que nós mesmos, com que nos desejamos unir; sendo esta tal a mais subida das saudades humanas, como se disséssemos: um desejo vivo, uma reminiscência forçosa, com que apetecemos espiritualmente o que não havemos visto jamais, nem ainda ouvido, e temporalmente, o que está de nós remoto e incerto; mas um e outro fim, sempre debaixo das premissas de bom e deleitável. Esta é em meu juizo a teórica das saudades, pelos modos que, sem as conhecer, as padecemos, agora humana, agora divinamente.
A SAUDADE
É a saudade uma mimosa paixão da alma, e por isso tão subtil, que equivocamente se experimenta, deixando-nos indistinta a dor da satisfação. É um mal, de que se gosta, e um bem, que se padece: quando fenece, troca-se a outro maior contentamento, mas não que formalmente se extinga: porque se sem melhoria se acaba a saudade, é certo que o amor e o desejo se acabarão primeiro. Não é assim com a pena; porque quanto é maior a pena, é maior a saudade, e nunca se passa ao maior mal, antes rompe pelos males; conforme sucede aos rios impetuosos, conservarem o sabor de suas águas, muito espaço de misturar-se com as ondas do mar, mais opulento. Pelo que diremos que ela é um suave fumo do fogo do amor, e que do próprio modo que a lenha odorífera lança um vapor leve, alvo e cheiroso, assim a saudade, modesta e regulada, dá indícios de um amor fino, casto e puro. Não necessita de larga ausência; qualquer desvio lhe basta, para que se conheça. Assim prova ser parte do natural apetite da união de todas as coisas amáveis e semelhantes; ou ser aquilo falta, que da divisão dessas tais coisas procede. Compete por esta causa aos racionais, pela mais nobre porção que há em nós; e é legítimo argumento da imortalidade de nosso espírito, por aquela muda ilação, que sempre nos está fazendo interiormente, de que fora de nós há outra coisa melhor que nós mesmos, com que nos desejamos unir; sendo esta tal a mais subida das saudades humanas, como se disséssemos: um desejo vivo, uma reminiscência forçosa, com que apetecemos espiritualmente o que não havemos visto jamais, nem ainda ouvido, e temporalmente, o que está de nós remoto e incerto; mas um e outro fim, sempre debaixo das premissas de bom e deleitável. Esta é em meu juizo a teórica das saudades, pelos modos que, sem as conhecer, as padecemos, agora humana, agora divinamente.
D.Francisco Manuel de Melo (s.XVII)
cit.por Eduardo Lourenço, in Portugal como destino / Mitologia da Saudade,Gradiva,1999
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