ESCREVER - 99
escrever
Antes de escrever para ti, leitor, é para mim que escrevo. Não para fazer um exercício de auto-contemplação, nem para me libertar de pesos que jamais folgarão tanto as costas como sacos de cimento. Escrevo para mim como quem se interroga, como quem procura construir-se num tempo e num espaço que agrilhoam o pensamento desde a infância perdida. No fundo, escrevo para me libertar de mim próprio e do mundo que me educa.«Pouco ou muito, de tempos a tempos toda a pessoa sente um desejo de abandonar o seu “eu” (esse conjunto aproximativo), tentada por um outro “eu”» (Henri Michaux). Nisso, imito as minhas filhas quando desarrumam a casa. Como elas, desarrumo o domicílio. Não se trata de brincadeira, caro leitor. Pergunta às crianças que te desorganizam a sala se preferiam estar ali, entre as quatro paredes de cimento, protegidas pelas quatro paredes de cimento, ou se preferiam andar na rua. Pode ser que te espante a resposta delas. Não te espantes com a minha: prefiro as casas desarrumadas aos ensaios, às leituras organizadas pela batuta de um maestro, não gosto de encenações, decorações, prefiro o acto, o puro acto da rua à brincadeira domiciliária. Nisso, eu imito o olhar das filhas quando metem torneiras a chorar e desviam da norma a existência dos comandos. Não busco anedotas, coisas belas, nem coisas que de tão feias se tornam caricaturais. Não me basta o rosto grotesco com que acordo todos os dias. Se quiseres, preciso exorcizar o monstro em que me transformo ou corro o risco de me transformar se deixar de insistir na insubordinação e me curvar, submisso, ao castigo que é a domesticação da vida. Podes chamar-lhe anarquismo ontológico, nomadismo espiritual, que nenhum desses conceitos me comoverá tanto como a velha magia de que falava Artaud. Não confundas magia com ilusionismo, pensa nela como se te fosse possível recuperar o sopro mais primitivo da existência. A dança do sol, um silabário anterior à sintaxe dos deuses.
Henrique Fialho – in http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/
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