07/03/11

DE AMICITIA - 105

ler"

amigos de longa data do dia que não acaba

quero os amigos que tenho na cabeça
os que tenho em mente nunca conhecer pessoalmente

e não vão ter defeitos os meus amigos de nunca
mais

os meus amigos são Simão que vende seguros e por isso
usa óculos só para os poder partir

são Jaime que tem um snack-bar que dá prejuízo

são Abu que é indiano e que está na minha cabeça só
para provar que sou multicultural e tirando isso
o Abu cala-se o Abu canha-se

e são eles aqueles que eu gostava de levar para a cova
para os apresentar à Nossa Senhora

e são eles aqueles com quem jogo cartas sem me
preocupar com a morada certa

e desabafo com eles como quem tem falta de ar
e converso com eles nos intervalos das discussões
que o resto do tempo fica para discutir quem é mais
meu amigo
amigo meu mais
meu mais amigo

e fazem concursos para ver quem me lava melhor os
pés
quem me coça melhor as costas
quem me dá o abraço mais apertado e sexual sem
chegar ao ponto do desconforto de ter vontade de o
beijar

e tenho tantas saudades deles
inventei as saudades que lhes tinha e pedi que chorassem
muito

e eles choraram o dobro de muito que é para cima de
um lago onde vamos nadar os quatro

o choro deles quando se juntam é do tamanho
da água de que precisa o veleiro de onde partimos à
aventura

e ao partir a aventura dividi-a pelos três
e agora estão ciumentos porque não dá conta certa
e disputam a amizade como um jovem lobo que aprende
a caçar

e eu dou-me todo por não ter a quem mais dar
e converso-lhes as palavras todas porque eles não
existem

e digo-me os elogios todos porque eles não me podem
ver

e canto-me as canções mais doces porque voz não
sabeis
não sabesnão estás cá
não estão cá
antes estivessem
se cá estivessem era melhor
não estando tenho de me contentar com os homens e
mulheres que estão ao meu lado e que eu não inventei

e cada vez tenho mais saudades deles
procuro alguém parecido mas não encontro

e quando encontro não gosto porque me apaixono pelas
pessoas que são o contrário do que a minha imaginação
prefere

e o Jaime o Simão e o Abu levaram a mal e foram
passar férias para a
cabeça de outra pessoa e nem um
recado deixaram

e se calhar não voltam
e se calhar não quero
e a cabeça já não tem inquilinos
e os que há estão à minha volta
mesmo à minha volta
mesmo de verdade
com caras que não me são familiares e personalidades
defeituosas que eu julgo como quem beija

a cabeça levo-a leve mas o coração bate mais forte
mais pesado
pudera tem gente lá dentro


João Negreiros In "Luto Lento",
Ed. Projecto Literatura em Movimento

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