02/02/11

K3

autores


Que sabia eu do cais de Alcântara
que não tivesse lido
em romances de guerra?

O certo é que vivia mergulhado
numa nuvem de sol,

poalha de luz em volta do meu corpo,
que obliterava o cérebro,
fototropismo
que me tinha levado a versos
alheios ao que fosse caminho,

hoje nem sei como eram,
foram-se na voragem
de cidades perdidas
que me trouxe a este início.

Que importa?

Os versos serão sempre
mais do que os mortos
e têm vida curta,
nem sequer me recordo se em algum
nomeei a Estação Marítima de Alcântara.

É desse cais que evoco a multidão
com lenços brancos
e o súbito rasgar de um choro
que fez levantar mães e raparigas
de sob a mole,

e a arrastou e moveu em uma onda,
derrubando cancelas
e estremecendo o barco,

enquanto dois carros de combate
vieram colocar-se
em frente do costado do navio,

e panfletos voavam
e paisanos atrás deles,

berravam e batiam
entre o tumultuar da gente,

e sombras escapavam,

já os folhetos estavam recolhidos,
e a multidão, contida por uzis em riste
e carabinas com mira telescópica
no terraço dos prédios,
e nós quase chorávamos,
na aflição e no pasmo que afastavam

uma revolta a bordo como aquela
de que há notícia
Fernão de Magalhães ter dominado.

Não me recordo que alguém tenha filmado
uma partida assim,
as amarras de um barco que se rompem
e os soldados a ver, atónitos,
a alteração dos seus na despedida,

e, mesmo que o tivessem feito,
como quereria eu saber do filme
se estava nele,
e se, confuso,
sentia o sangue de a vida não ter prazo
e, em queda, a eternidade de ser jovem
com a morte adiante,
que um grito colectivo rasurara,

[.....]

Nuno Dempster, - K3 -ed.& etc.2011,p.7-8
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Nota: eis um livro, que se tornava indispensável, sobre a vivência vivida (é intencional a redundância) da guerra colonial, iniciada, em Angola, no dia 4 deste mês de fevereiro de há 50 anos, e depois alargada à Guiné,(a que passa nestes versos), Moçambique...É este o 1ºlivro de poesia, dura, pungente, e, de certo modo catártica para quem a viveu de dentro ou do lado do lá dos barcos que partiam, por esse mar / lágrimas de Portugal, como escreveu Fernando Pessoa. É também um livro para a preservação da memória que urge seja preservada. Transcrevo acima os primeiros versos e, por todos estes motivos, recomendo vivamente este livro e o seu autor, que publicara antes Dispersão, em ed. Sempre em Pé e Londres, na & etc.Nuno Dempster vai também publicando no seu blogue a esquerda da vírgula.(http://esquerda-da-virgula.blogspot.com/)

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