21/01/08

DA EDUCAÇÃO - 34



Mas, se eu não podia atrair os alunos a uma reali­dade «sociológica», podia falar-lhes do mistério obscuro da vida. Aliás, julgo-o hoje, bom reitor, o que tu me proibias não era bem que os alunos sentissem a pessoa flagrante do moço de fretes, do operário; era que eles criassem outro ser, à margem da lei dos homens e talvez dos deuses. O que tu me proibias era que eles formassem com as suas mãos mortais uma pessoa nova, um outro Adão fora da Bíblia. Mas havia tanta coisa de que falar! De uma vez calhou lermos a Sobolos rios que vão. Con­tava-se aí da Babilónia e da Jerusalém celeste..E Camões meu reitor de não sei quando, só queria dizer que a pátria celeste era uma aspiração do seu sonho de miséria do seu sonho de condenado. Mas eu sabia, eu, que não tenho um Deus que me justifique e redima, eu, que luto há tanto tempo por reconduzir à dimensão humana tudo quanto traz ainda um rasto divino, eu, que desejo reabsorver isso na minha condição mortal e efémera de um pobre arranjo de água e barro, eu, que nada ,recuso à minha emoção e ao meu alarme de tudo quanto me alarma ou me comove, eu, que sou materialista mas não só de um materialismo que se mede a metro e pesa na balança, eu, que sonho com o reinado integral do homem na terra da sua condenação e grandeza, assu­mindo tudo quanto se anuncia em mistério e exaltação, eu sabia que a memória de Camões, para além dos olhos e da carne, era a minha memória de origens, a minha memória absoluta. Somente no meu impulso para ultra­passar as nuvens, para vencer o espaço da minha vida, eu achava o céu vazio. Mas a memória era minha, eu o sabia, eu o sabia destes avisos surdos que me abalam nas raízes do meu ser, deste alarme de nada quando certas horas me visitam, quando a tua música me lem­bra, Cristina. Chopin. Nocturno nº 20. Cristina...

Vergílio Ferreira, Aparição

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