26/10/07

LEITURAS - 53



Lembro perfeitamente a tarde quieta em que parei à porta da pensão, para tomar um quarto sem refei­ções: Chambre à louer. Puxei a argola de latão da cam­painha e esperei alguns instantes. A porta abriu-se e vi aparecer uma mulher forte, rosada, loira e mal pen­teada, com um avental de riscado azul, por sinal um pouco enxovalhado. Sorriu e acolheu-me cordialmente. Era a patroa - Annette-Marie, Madame Lambertin «para o servir». Levou-me então ao quarto e (supunha eu) último andar, sacudindo chaves e falando sempre numa voz ligeiramente rouca, entrecortada, que a as­censão tornou ofegante. Chegou lá cima quase áfona. Pensei no alcoolismo, em complicações cardíacas. De caminho fiquei sabendo a história de quase todos os hóspedes, gente sossegada, nenhum barulho. Um cão preto, pequeno, sem rabo nem raça, subia jovialmente adiante de nós: era o Bouboule, «um amor». Nos pata­mares pulava-me entre as pernas, a lamber-me os de­dos, como se fôssemos velhos conhecidos.O quarto tinha duas grandes janelas para o céu leitoso, os telhados velhos e as chaminés apinhadas. Papel desbotado nas paredes, o oleado gasto, com al­guns remendos, a cama larga e fofa, e um fogão de ferro de modelo antigo. Era modesto e a renda em conta. Decidi ficar.

José Rodrigues Miguéis - Léah e outros contos -abertura

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