O PRAZER DE LER - 64
picasso, mulher a ler
os meus livros
Livros, ó mudos livros das estantes frias,
vivos no seu silêncio, ardentes na sua calma;
livros, os que consolam, veludos da alma,
e que sendo tão tristes nos dão alegrias!
Ao dia afadigado as minhas mãos renderam-se;m
as à noite lá fui procurá-los, amantes,
no côncavo do muro, onde, como semblantes,
me fitam, confortando-me, aqueles que viveram.
Bíblia, tão nobre Bíblia, horizonte estupendo
onde um dia fixei os olhos longamente,
tens sobre esses teus Salmos as lavas ardentes
e no seu rio de fogo o coração acendo!
Nutriste a minha gente com o teu forte vinho,
ergueste-os vigorosos no meio dos homens
e eu ergo-me enérgica ao dizer teu nome,
porque é de ti que venho, quebrei o Destino.
Depois de ti, com o seu amplo alarido eterno,
atravessou-me o sangue o sumo Florentino.
Perante a sua voz, como um junco me inclino;
e fantástica avanço nesse rubro inferno.
E para refrescar sobre o musgo orvalhado
a boca, ainda a arder com as chamas dantescas,
fui em busca das Flores de Assis, sempre tão frescas,
e na felpa deitei o peito descansado!
Eu vi Francisco, Aquele tão doce como as rosas,
pelo campo passar, mais leve que um suspiro,
beijando o peito em chaga e o aberto lírio,
pra beijar o Senhor, que respira nas coisas.
Poema de Mistral, cheio de sulco aberto
de manhã exalado, inspirei-te embriagada!
Vi Mireia espremer a fruta ensanguentada
do amor, e correr pelo atroz deserto.
Recordo-te também, refrão de mil doçuras,
verso de Amado Nervo, com peito de pomba,
que me suavizaste o contorno das lombas
quando te estava a ler nas minhas manhãs puras.
Nobres livros antigos, de folhas sebentas,
sois lábios sempre prontos a animar os tristes,
Amargura que veste um novo manto e insiste
desde Job até Kempis nessa voz dolente!
Eu amo-vos, ó bocas dos poetas idos
que ainda me consolam, desfeitas em poeira,
e que falam comigo à noite, à cabeceira,
junto ao meu candeeiro, em seus doces gemidos!
Gabriela Mistral (Chile)
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