PENSAR - 57
A Arte é Tudo
A arte é tudo - tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo. Leónidas ou Péricles não bastariam para que a velha Grécia ainda vivesse, nova e radiosa, nos nossos espíritos: foi-lhe preciso ter Aristófanes e Ésquilo. Tudo é efémero e oco nas sociedades - sobretudo o que nelas mais nos deslumbra. Podes-me tu dizer quem foram, no tempo de Shakespeare, os grandes banqueiros e as formosas mulheres? Onde estão os sacos de ouro deles e o rolar do seu luxo? Onde estão os olhos claros delas? Onde estão as rosas de York que floriram então? Mas Shakespeare está realmente tão vivo como quando, no estreito tablado do Globe, ele dependurava a lanterna que devia ser a Lua, triste e amorosamente invocada, alumiando o jardim dos Capuletos. Está vivo de uma vida melhor, porque o seu espírito fulge com um sereno e contínuo esplendor, sem que o perturbem mais as humilhantes misérias da carne!
Nada há de mais ruidoso, e que mais vivamente se saracoteie com um brilho de lantejoulas - do que a política. Por toda essa antiga Europa real, se vêem multidões de politiquetes e de politicões enflorados, emplumados, atordoadores, cacarejando infernalmente, de crista alta. Mas concebes tu a possibilidade de daqui a cinquenta anos, quando se estiverem erguendo estátuas a Zola, alguém se lembre dos Ferry, dos Clemenceau, dos Cánovas, dos Brigth? Podes-me tu dizer quem eram os ministros do império em 1856, há apenas trinta anos, quando Gustave Flaubert escrevia «Madame Bovary»? Para o saber precisas desenterrar e esgaravatar com repugnância velhos jornais bolorentos: e achados os nomes nunca verdadeiramente poderás diferenciar o sujeito Baroche do sujeito Troplong: mas de «Madame Bovary» sabes a vida toda, e as paixões e os tédios, e a cadelinha que a seguia, e o vestido que punha quando partia à quinta-feira na «Hirondelle» para ir encontrar Léon a Rouen! Bismarck todo-poderoso, que é chanceler e de ferro, daqui a duzentos anos será, sob a ferrugem que o há-de cobrir, uma dessas figuras de Estado que dormem nos arquivos e que pertencem só à erudição histórica: o papa Leão XIII, tão grande, tão presente, que até as crianças lhe sabem de cor o sorriso fino, não será mais, na longa fila dos papas, que uma vaga tiara com um número; mas duzentos anos passarão, e mil - e o nome, a figura, e a vida de certo homem que não governou a Alemanha nem a Cristandade, estará tão fresca e rebrilhante como hoje na memória grata dos homens.
Eça de Queirós, in 'Prefácio dos «Azulejos» do Conde de Arnoso'
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