04/10/05

LER OS CLÁSSICOS - 22



Do grande pranto que os mouros faziam sobre a perdição da sua cidade

Piedosa coisa era ouvir os gemidos daqueles mouros, depois que se afastaram da sombra dos muros da sua cidade. Porque começaram a afastar-se por entre a espessura dos arvoredos de suas hortas e pomares e não havia ninguém que à chegada pudesse sentir-se seguro, por muito escondido que fosse o lugar. Vinham amedrontados com a mortandade que tinham visto fazer a seus vizinhos e parentes. Mas, assim que chegou a noite, arranjaram mais coragem e começaram a sair daqueles matos, cada um de sua parte, e a chamarem-se uns aos outros pelos seus próprios nomes, e as mães chamavam os filhos, e os maridos as mulheres - e quando conseguiam reunir-se achavam algum remédio para seu conforto, ainda que lhes não durasse muito; porque a recordação da perda geral não podia ser esquecida por nada que fosse; e. sobretudo, não havia ninguém que não tivesse que chorar, porque a uns faltavam os filhos, a outros as mulheres, e alguns se encontravam ali a quem faltavam todos. E assim começavam a fazer seu pranto muito dorido, chorando a sua perdição, porque se lembravam do que tinham perdido, e que era tanto que a cada um por si lhe provocava grande tristeza, e então nomeavam a sua grandeza e importância, cada qual como as perdera. "Haverá no mundo - diziam eles - entendimento em que possa caber que uma tão nobre e real cidade num só dia se pudesse perder?! Por certo que não foram homens vivos, mas poderes do inferno que vieram sobre nós, pois mal se poderá acreditar que em tão breve tempo foi terminada, que semelhante obra o fosse por força ou poderio terreal. E que os autores das histórias escrevam, diziam, que nunca houve campanha mais mal aventurada que esta nossa. porque ainda que estivéssemos no campo com palhas por inimigos, não poderíamos ser tão depressa vencidos! E ao menos que nos permitisse a nossa pouca sorte a graça de termos tido um tempo em que pudéssemos conhecer a nossa derrota. que nos teria sido de bom aviso!" E então começavam a contar uns aos outros todos os acontecimentos da sua partida, e quais os que tinham morrido logo na primeira rua, e quais depois; e contavam também da grande multidão de parentes e amigos que jazia espalhada pelas ruas e praças da cidade. Os velhos contavam que tinham ouvido falar a seus pais e avós daquela perdição. dizendo que viriam dias em que aquela cidade haveria de ser regada com o sangue dos seus filhos e moradores. l...]Outros contavam sonhos em que tinham sonhado com coisas maravilhosas que lhes tinham aparecido e que contavam depois da desgraça.E assim estiveram aquela noite em seus tristes lamentos, cada um contando as suas coisas desvairadas, como sucede habitualmente aos que, vigiando, ficam carregados de tristes pensamentos. Tais havia a quem apareciam grandes chamas de incêndios, outros águas correntes, outros grande multidão de navios. Outros viam pelejar touros, outros viam a lua e as estrelas e outros sinais do céu: a outros parecia que falavam seus pais e parentes e amigos finados e muitos daqueles que tinham morri do nesse dia. Havia muitos que se iam para as herdades e quintas, onde tinham suas casas. [...] E assim andavam duma parte para a outra, como homens tresloucados, parecendo aquela sacerdotisa Edónis, que morava nas montanhas do monte Pindo, a qual fazia todos os anos os seus sacrifícios ao deus Baco, que era deus do vinho, segundo conta o mestre Gonfedro, parecendo-lhes que se fartavam em fazer aquele estrago, até que termina vam, de cansados. Outros que tinham algumas ferramentas consigo naquelas quintas decepavam as árvores. Mas havia outros que se temperavam nas suas iras, esperando ainda recuperar a sua cidade. [...] "Ora, diziam, porque destruiremos as nossas coisas! Pode ser que Deus se amerceie de nós e voltemos a tomar posse da nossa cidade - a qual, que mais não seja, fica tão longe do reino de Portugal que os cristãos não a poderão conservar."


Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta

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