LER OS CLÁSSICOS -5/2-cont.
{...}livremente, mas como aquele que tem véu posto ante os olhos vê as cousas, dessa guisa [desse modo] ele pensa em todas outras fora do seu fundamento por cima daquele cuidado que lhe faz parecer todas as folganças nada, não havendo aquela que mais deseja. E se a cobrasse [alcançasse], que tristeza nunca sentiria, o que é tão errado pensamento como bem demonstram muitos exemplos, os quais não quer consentir que se creiam, posto que claramente de demonstrem, pensando que nunca semelhante como ele sentiu que o contrário pudesse sentir, o que adiante as mais das vezes se demonstra mui desvairado do que parece. E por aqui se pode bem conhecer, posto que não caia em outro erro, quanto perigo é trazer um tal cuidado assim reinante em ele, que o não deixe pensar em cousa livremente sem haver dele lembramento, e como constrangido cuidar em qualquer outro feito por pesado que seja, para o coração no que tais amores lhe mandam quer embargar seu sentido, desamparando todos os outros por necessários que sejam. E por estas razões convém que traga e faça maiores sentimentos que outra maneira de amar.
A boa amizade de entre marido e mulher e outros verdadeiros amigos disto sentem o contrário, porque, quanto ao primeiro, não passam tal contrariedade de entre o entender e vontade, porque ambos são dum acordo; quanto praz ao coração de amar, tanto assim julga o entender que é bem de se fazer. Ao segundo, desejo rijo não sentem, porque vivem em deleitação e contentamento; tais ciúmes não devem haver por a grande segurança que um do outro, sem algum temor, sempre tem. [.....]
A boa amizade de entre marido e mulher e outros verdadeiros amigos disto sentem o contrário, porque, quanto ao primeiro, não passam tal contrariedade de entre o entender e vontade, porque ambos são dum acordo; quanto praz ao coração de amar, tanto assim julga o entender que é bem de se fazer. Ao segundo, desejo rijo não sentem, porque vivem em deleitação e contentamento; tais ciúmes não devem haver por a grande segurança que um do outro, sem algum temor, sempre tem. [.....]
E se algum sente trabalho, ou amiúde se torva por amor que tenha dalguma pessoa, se não é por manifesto mal, perigo ou perda que vem a ele ou a quem assim ama, saiba que tal amor é por desordenada paixão ou falecimento dalguma das partes, e não de amizade que por virtude, acordo de razão e bom entender de ambos convém ser confirmado, os quais sem causa direita não dão nem consentem padecer, por assim amar, suspeita, nojo, tristeza ou algum empacho, nem cativamento de cuidado, mas outorgam liberdade.[....]
E porém, ainda que os amores tragam os sentimentos suso [atrás] ditos e façam obrar por eles cousas mui revessadas, não se creia porém que com eles mais amam, porque o verdadeiro amor com benquerença e vontade de bem fazer mais está na direita amizade ca em eles, cujo fundamento, como disse, é um desordenado desejo de ser benquisto e cumprir vontade por continuada afeição, sem outro regimento de bom entender nem virtude [....]
Porém dou este avisamento que não pense algum que possa bem achar pessoa tão perfeita para amar que seja fora de todos os falecimentos, e em virtudes, condição, maneira de viver, linhagem, idade, acordamento de vontades e boa disposição, mas onde o principal bem está, as pequenas mínguas devem ser tão escurentadas que se não sintam, ou pareça que não queriam que se mudasse, duvidando de perder alguma cousa do principal que mais prezam. [....]
Rei Dom Duarte,in Leal Conselheiro
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