27/04/05

CORREIO DOS LEITORES


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FOMOS NÓS QUE NOS DEIXÁMOS EXPROPRIAR DA FESTA


Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo”

(Sophia de Mello B. Andresen)


Quem julgar ser coisa pirosa andar agora a dizer-se que se tem trinta anos por causa do 25 de Abril ou é velhinho ou ainda anda de cueiros. É verdade. Nasci nos princípios da Segunda Grande Guerra e… tenho trinta anos e… não sou piroso. É assim mesmo e andei também no PREC e não estou arrependido.

Naquele tempo, encontrava-me em terra pequena, de grandes vizinhanças e proximidades, de revoltas camufladas e de submissões a fingir: a necessidade aguça o engenho, mas não compra as almas.
Alguns funcionários públicos, da Fazenda e da Câmara, contados pelos dedos das duas mãos; de bancários, o gerente do balcão e o barbeiro que, em tempo de nada fazer, dava uma mãozinha nos formulários; de professores, menos que os precisos; meia dúzia de comerciantes, mais uma pensão para viajantes, de lençóis limpos, águas correntes e comida cheirosa. As almas e as conversas pediam dúzia e meia de tasquitas, em jornada contínua; consoante a hora do dia e os trabalhos nos chãos, abriam--se de quatro a oito cafés.
Por ali andava gente; uns morriam a trabalhar na terra, outros, na terra onde havia guerra; muitos tinham saltado para franças e araganças.

De princípio andava por ali; depressa, provei uma ponta de chouriça, cheirei, depeniquei e engulosinei-me com uma morcela; um vinhito medrado ao sol nascente alegrou-me dos pés até à cabeça e das tripas ao coração… Deixei de andar por ali: passei a estar lá.

Pessoas quentes. Pobretes, mas, de maneira nenhuma, alegretes; a submissão era a fingir e as afeições tinham de ser merecidas. Quem passa a vida a trabalhar na terra ou a morrer na guerra guarda as sementes da liberdade e aprende a conhecer quem vai na carruagem muito para além da aragem.
Pagavam foros que alguém estuporava nos casinos, mas cheiravam a sombra do cobrador e adivinhavam-lhe a chegada: o vento havia levado parte da sementeira, o lobo comido uma rês e a trovoada tinha encharcado o faval: sempre ficava qualquer coisita que não ia parar ao casino.

De vez em quando, aparecia um forasteiro, de chapéu descaído, olhar de estrábico a mirar as pessoas de cima da burra; entrava e saía dos comércios, a tentar contar os leitores do “República” (éramos quinze, sim, senhores) e a “Seara Nova” (aí éramos menos…); sentia tudo frio, logo que chegava; em dias de lume aceso no café, espetava aqueles olhos desgraçados do glaucoma no quentor do brasido…mas a roda estava feita e apertada… já não cabia mais ninguém à lareira.
Quis vingar-se, o malandro, mas já não teve tempo: surgiu “o dia inteiro e limpo” que nos ofereceu “a substância do tempo”. É que, sempre que alguém instalado na burra começa a perder o equilíbrio e os que fazem a limpeza aos cascos já não suportam a bosta, ocorrem as revoluções. Está nos livros e no direito das gentes…

É só assim que consigo falar do 25 de Abril: é a voz dos afectos. A mesma força que leva a que quem guarda as sementes da liberdade não queira que se pise o que acaba de nascer. Por isso, andei no PREC, sim, senhores, e não estou arrependido.

Éramos muitos. Experimentavam-se procedimentos; das lutas de uns e outros se fez a aprendizagem da democracia: nas famílias, nas ruas, nos bairros, nos empregos. De barricadas diferentes, entre conflitos, ora com diálogos, ora com silêncios e algumas ganas, todos sentiam a coisa pública e a coisa privada como assunto que galvanizava e empenhava palavras e actos. A democracia que se aprendia era aquela em que se sabia que não há uns homens que nascem para mandar e outros que andam por cá para obedecer. A participação era a palavra de ordem. Não se depositavam destinos em iluminados, mais ou menos eleitos.
Ainda (e já) se sabia que, mesmo que não se saiba bem para onde se vai, tem-se a certeza de que se há-de lá chegar.

E isto é que era uma festa.

Parece que estamos a regressar da festa. Não porque já não se fale de processos revolucionários, mas porque as paixões mais ou menos solidárias e as lutas sempre conscientes e, por vezes, duras, cederam lugar a esta cousa que nos leva a andar a resmungar de tudo e de todos e a fechar-nos em casa, ou a ir, aos domingos e religiosamente, ao futebol a destilar impropérios contra sulistas e nortistas… para regressarmos a casa com cara de urso, porque no dia seguinte… nunca mais é sábado!


“País engravatado todo o ano
e a assoar-se na gravata por engano”

(O’Neill)


Os salazarentos tempos eram assim…
Mas, pior que tudo: fomos nós que nos deixámos expropriar da festa.


Em 2004, trinta anos depois de Abril


Zeferino M. Silva

Obs.: como devem lembrar-se, no final das Notícias do Antigamente, eu interpelava os leitores a, caso o desejassem, as completarem com o seu testemunho. O amigo Zef assim fez, enviando-me esta sua crónica, elaborada em 2004 - que agradeço.


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